A correria de final de ano, com fechamento de notas e conselhos de classe, etc., me deixa sem o tempo necessário para um novo texto. Recorro (e já tinha de todo modo pensado em fazê-lo em algum momento) ao pequeno poema "The Boys", que escrevi quando meus filhos eram ambos ainda pequenos. Está em inglês, foi assim concebido, mas não é um inglês complicado, de modo que mesmo aqueles de meus leitores que não sejam fortes nessa língua poderão ler e entender os votos de felicidade de um pai coruja para seus filhos amados.
Aproveito para agradecer as sugestões de nome para o poema da postagem anterior. Decidi ficar com a conscienciosa sugestão da Profa. Mara Jardim, e doravante meu pequeno poema meditativo se chamará "Sine Reditus".
Grande abraço!
In this house of ours live
two boys. May God always give
both of them light, health and joys.
Nothing bad shall reach the boys.
And if a monster (a nasty monster!)
tries to get through their bedroom window?
These two boys aren’t to be fun—
they’ll sure make this monster run!
May God keep them always strong,
away from everything that’s wrong.
In this house of ours sleep
two boys. May God always keep
both of their lives in good lead,
away from sadness and need.
O blogue é um espaço de exercício de escrita e, portanto, de reflexão. Idealmente, mobilizará alguns leitores.
LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
POEMA EM BUSCA DE NOME, da série "poemas de circunstância"
Enquanto aguardamos a continuação do relato sobre Aloprina-Safo (que, afinal, talvez nunca venha, visto tão pouco interesse haver despertado), entretenhamo-nos com mais um "poema de circunstância". Gostaria de lançar um desafio aqui: como nunca soube pôr um nome, um título neste texto, peço àqueles leitores que se sintam inspirados que o batizem. Enviem-me um nome, e aí veremos, certo?
Abraço!
Não tens como voltar
Que se saiba
Deixando de lado os embustes
Ninguém jamais voltou
Ora, o pensamento de que se volta
De que se pode algum dia voltar
Ainda que sob outra pele
E com outros ossos
Atraente embora
Nunca me convenceu
Só os tolos se comprazem a crer
Que valem mais que os pássaros e os cães
Do que as flores do campo
E as taquaras que o vento inclina
A vida é uma e apenas uma, e só
Teus dias são únicos e teus tão somente
Infinitos talvez psicologicamente
Mas materialmente breves como a aurora
Estão inarredavelmente contados
Eis o que me parece sensato crer
Mas há um modo de ficar
Se assim o desejares
Na vida dos que permanecem ainda
Pode parecer estultice
Pensar em deixar algo
Se já nunca mais o veremos em uso
De fato, assim é
Mas que importa?
Não haverá possivelmente ato de amor maior
Que o desinteresse em deixar-se ficar
Sem que isso nos afete minimamente sequer
E para sempre
Matar um presidente
Plantar uma roseira
Escrever uma tese
Ainda que insuficiente e cheia de goteiras
Ou alinhar palavras velhas na intenção de um poema novo
Em prosa ou verso
Tu decides, amigo
Porém o silêncio e o esquecimento talvez
Sejam o que de melhor se possa afinal fazer
E deixar nada no fim
É amar firme e forte
É agradecer o acaso
Que nos pôs nesta inexplicável e maravilhosa
Tristeza de existir
Abraço!
Não tens como voltar
Que se saiba
Deixando de lado os embustes
Ninguém jamais voltou
Ora, o pensamento de que se volta
De que se pode algum dia voltar
Ainda que sob outra pele
E com outros ossos
Atraente embora
Nunca me convenceu
Só os tolos se comprazem a crer
Que valem mais que os pássaros e os cães
Do que as flores do campo
E as taquaras que o vento inclina
A vida é uma e apenas uma, e só
Teus dias são únicos e teus tão somente
Infinitos talvez psicologicamente
Mas materialmente breves como a aurora
Estão inarredavelmente contados
Eis o que me parece sensato crer
Mas há um modo de ficar
Se assim o desejares
Na vida dos que permanecem ainda
Pode parecer estultice
Pensar em deixar algo
Se já nunca mais o veremos em uso
De fato, assim é
Mas que importa?
Não haverá possivelmente ato de amor maior
Que o desinteresse em deixar-se ficar
Sem que isso nos afete minimamente sequer
E para sempre
Matar um presidente
Plantar uma roseira
Escrever uma tese
Ainda que insuficiente e cheia de goteiras
Ou alinhar palavras velhas na intenção de um poema novo
Em prosa ou verso
Tu decides, amigo
Porém o silêncio e o esquecimento talvez
Sejam o que de melhor se possa afinal fazer
E deixar nada no fim
É amar firme e forte
É agradecer o acaso
Que nos pôs nesta inexplicável e maravilhosa
Tristeza de existir
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
ALOPRINA-SAFO (1ª parte)
Quando estive na Inglaterra, conheci lá um senhor muito viajado e culto. Como sabemos, são normalmente os ingleses bastante reservados (há mesmo quem os queira até algo fleumáticos), mas, tão logo se façam as devidas apresentações, mostram-se assaz simpáticos e mesmo muito comunicativos. Pois esse senhor de quem vos falo, reconhecendo em mim o indefectível sotaque estrangeiro, quis de imediato saber de onde eu vinha. Informado de minha procedência, revelou-se ainda mais receptivo, pois, disse-me logo, e não sem algum orgulho (quero crer): “Tenho em mim, por parte dos avós maternos, o bom e puro sangue português!” Ora, sendo eu brasileiro, e do tipo “pelo duro”, em quem, caso tivesse o sangue dos distintos povos cor diferente, um corte possivelmente revelasse um líquido policromático, confesso que pouco ou mesmo nenhum sentido pude auferir do qualificativo “puro”, deixe-se de lado “português”; e quanto a “bom”, eis aí talvez um dos vocábulos que, ao lado de “interessante”, tragam em si tanta amplidão de significado que, no final, acabam mesmo por nada significar. Em todo caso, minha imediata observação, visto a pausa de meu interlocutor sugerir-me que algo devesse observar, foi bem esta: “How interesting!”
Encontrávamo-nos no backyard de uma casa Quaker (numa meeting house, como lá se lhes chama) e saboreávamos uma boa taça de Earl Grey, temperado, à moda inglesa, com uma indubitável dosezinha de leite. Tomando ele conhecimento de que eu me ocupasse de ensino, depois de me haver relatado algumas de suas viagens para “além da Taprobana”, entrou aquele Vasco da Gama bretão a falar-me da ilha Aloprina-Safo, que, caso o leitor não saiba (eu não sabia), se situa no Oceano Índico, a cerca de 230 milhas náuticas (uns 423km) ao sul das Ilhas Cocos, a oeste da costa ocidental australiana.
Por curioso e, vamos lá, “interessante”, faço a seguir um breve apanhado do relato que ouvi daquele senhor inglês sobre essa distante ilha e, mais especificamente, de seu singular sistema educacional.
A primeira curiosidade daquele lugar que de imediato me despertou a atenção foi, lá, um professor graduado impreterivelmente perceber rendimentos na ordem de 20 a 30 por cento inferiores àqueles auferidos pelos demais profissionais graduados. Não bastasse tamanho dislate, fiquei ainda sabendo que naquelas terras, onde se valoriza em excesso um esporte chamado “tutaopé”, um desportista profissional pode embolsar num único mês o que um mestre-escola talvez não chegue a receber em 20 ou mesmo 30 longos anos de estafante labuta! E isso que tal atleta não necessita saber senão assinar o próprio nome num contrato (e muitos destes, diz-se, saberão pouco mais que isso), ao passo que, por lei, não se pode mais ingressar na carreira docente sem uma graduação superior, uma “licença”, como lá se chama, a qual, somada aos 12 anos do ensino básico, perfará um total de, no mínimo, 16 anos de preparação ao trabalho.
Tão baixa remuneração não deixou de criar problemas ao governo, que se vê pressionado pela sociedade civil, a queixar-se ou da falta de docentes, ou da pouca qualidade daqueles que se propõem a sê-lo. Pudera, numa sociedade em que o dinheiro representa a mola, o impulso para as ações civis, será um Ghandi, um Cristo ou uma Madre Teresa de Calcutá aquele que, tendo as necessárias e exatas qualificações, se disponha a ingressar em carreira assim tão altruísta; a não ser, claro, que não lhe sobre muito mais a fazer...
Tomou o governo federal, então, a iniciativa de estabelecer um “piso” salarial a fim de que, com o tempo, a carreira docente se mostrasse menos antipática. Algumas províncias, porém, depois de um primeiro entendimento da noção de “piso” como se fora quase um “teto” (num equívoco arquitetônico primário, mas não, parece, sem segundas intenções...), recorreram ao Supremo Tribunal Federal, alegando falta de fundos para cumprir a lei. Vendo esse pedido indeferido, seus dignitários entenderam, então, propor aos sindicados docentes que o tal piso fosse sendo alcançado aos poucos, coisa de alguns dois ou três anos, disseram (mas isso sem, no entanto, estabelecerem sequer um calendário em que os professores pudessem objetivamente enxergar seu minguado progresso financeiro). Nada feito, porém! Os sindicatos apresentaram um ultimato: ou se pagava o piso imediatamente, ou a categoria entrava em greve por tempo indeterminado!
Ora, um dos artigos da democrática e cidadã constituição de Aloprina-Safo assegura o “direito de greve”. Contudo, em serviços diretos à população (e poucos não o serão), é a greve, como se sabe, uma poderosa carta potencial; mas basta que dela efetivamente se lance mão para que tudo se vá com a breca! A hipocrisia social é tamanha, que, embora consabida seja a penúria do magistério, será sempre uma minoria a estar de fato disposta a pagar o preço da luta, que se quer, no entanto, sempre justa. A imprensa, demagógica por definição (ainda que jure e conjure ser “objetiva”), invariavelmente apresenta uma única e sempre mesma linha editorial: justa embora, não é a greve a melhor saída “no momento”, “é inoportuna”, “e como ficam os cidadãos?”, etc., etc.
Depois, há de se considerar também que, em todo movimento grevista, existem sempre três distintas facções: (1) aqueles que efetivamente entram em greve, o que não significa deixar apenas de dar aulas, mas antes envolver-se numa série de atividades cujo fim último será criar um movimento bem-sucedido; (2) aqueles que não param suas atividades funcionais (seja porque discordam da paralisação: o que os coloca numa posição antidemocrática, visto não ter podido haver a decisão de entrar em greve senão por maioria, nos fóruns adequados; seja porque temem, e isto é sintomático no caso dos docentes, perder suas férias, tendo em vista que deverão, na volta, recuperar o calendário acadêmico, em conformidade com a lei); e (3) aqueles que simplesmente decidem, de modo egoísta, tirar “umas férias” extemporâneas, pensando, cinicamente, que haverá sempre sobra de braços a operar o movimento, e isso quando não argumentam, igualmente de modo antidemocrático, que, porque não concordam com a greve, não veem por que devam trabalhar a seu favor, e acabam assim sem fazer nada (de “férias” mesmo), sendo, depois, os primeiros a choramingar quando se lhes quer obrigar a cumprir o calendário: “E nossas férias!?”, gritam aos quatro ventos.
Depois, há de se considerar também que, em todo movimento grevista, existem sempre três distintas facções: (1) aqueles que efetivamente entram em greve, o que não significa deixar apenas de dar aulas, mas antes envolver-se numa série de atividades cujo fim último será criar um movimento bem-sucedido; (2) aqueles que não param suas atividades funcionais (seja porque discordam da paralisação: o que os coloca numa posição antidemocrática, visto não ter podido haver a decisão de entrar em greve senão por maioria, nos fóruns adequados; seja porque temem, e isto é sintomático no caso dos docentes, perder suas férias, tendo em vista que deverão, na volta, recuperar o calendário acadêmico, em conformidade com a lei); e (3) aqueles que simplesmente decidem, de modo egoísta, tirar “umas férias” extemporâneas, pensando, cinicamente, que haverá sempre sobra de braços a operar o movimento, e isso quando não argumentam, igualmente de modo antidemocrático, que, porque não concordam com a greve, não veem por que devam trabalhar a seu favor, e acabam assim sem fazer nada (de “férias” mesmo), sendo, depois, os primeiros a choramingar quando se lhes quer obrigar a cumprir o calendário: “E nossas férias!?”, gritam aos quatro ventos.
Serão esses os motivos por que as greves dos professores da democrática ilha de Aloprina-Safo se terminam sempre no maior e mais estrondoso fracasso.
Ao que tudo indica, em Aloprina-Safo os professores, além de pouco dinheiro, têm igualmente bem poucos poderes. Com efeito, um parecer que esses profissionais venham a chancelar não será referendado por esse ato apenas (como o é, por exemplo, um atestado médico ou, a bem dizer, uma disposição de qualquer outro profissional qualificado); tem antes de passar por uma série de mãos, numa escalada hierárquica que, mutatis mutandis, se assemelhará aos círculos do inferno dantesco. Mas isso, supostamente, se tal parecer vier de encontro ao raciocínio numérico que o governo tenciona apresentar à apreciação da comunidade nacional e internacional. Sendo, portanto, o avanço dos discentes de série para série, ou ano para ano, quase um imperativo categórico, será muito mal vista toda apreciação negativa, que, “unilateralmente” (é o que se diz), queira que um dado aluno deixe de progredir no sistema educacional. Tanto isso é assim, que em algumas comunidades educacionais deverá o docente que queira reprovar um dado aluno munir-se de um verdadeiro dossiê, o qual poderá evidentemente acabar sendo indeferido, juntamente com o parecer negativo que lhe deu origem. Como essas decisões devam ser tomadas em véspera de férias, justamente num momento em que os profissionais estão às portas do anual descanso, serão raros aqueles obstinados que se empenhem a provar ao mundo que uma espada é tão somente uma espada. Assim, o pensamento pragmático do corpo docente é: nossos alunos tiveram a chance de frequentar nossas aulas – ora, se nenhum ou muito pouco proveito puderam colher delas, que assim sigam seu caminho: a vida lhes há de ensinar o que precisam quando (e se) vierem a precisar. E a verdade é que, de fato, dos conteúdos vistos na escola, bem poucos se têm revelado de alguma utilidade efetiva.
Há aqui um paradoxo, creio eu, pois, segundo pude entender, valoriza-se um currículo utilitário, que, em outras e mais simples palavras, sirva para alguma coisa na vida do futuro egresso; todavia, esse pobre indivíduo se vê na obrigação de arrebanhar um sem-número de conhecimentos, e todos mais ou menos pela metade, os quais deverá em seguida, e se conseguir livrar-se deles, jogar ao lixo. Mas há, diz-se, uma boa razão para que assim se faça, e esta é um rito de passagem a que, muito apropriadamente, se convencionou chamar “vestibular”. Ora, não havendo vagas para todos na universidade (a constituição de Aloprina-Safo só entende como “obrigatório” o ensino básico), se vê o estudante forçado a disputar um lugar ao sol do saber universitário num concurso muito disputado (o Vestibular). E sairá vitorioso nessa contenda aquele ou aquela que tiver uma memória de elefante, que lhe possibilite lembrar-se de fórmulas, datas, nomes e não sei mais o quê. Mas tão logo entre na universidade, é abrir o latão do lixo e flosh! jogar aquilo tudo às moscas! Será, claro, sempre preciso reservar algo para si, mas aí dá pena de entender que o que se deve reservar foi tão pouco explorado: havia que dividir espaço com o resto.
Céus! Vejo que avanço já para a terceira página, justamente quando meus leitores me pedem que não escreva muito!
Façamos assim: como ainda há o que relatar sobre o que me contou aquele senhor inglês sobre a interessante ilha de Aloprina-Safo e seu mui peculiar sistema educacional, fico hoje por aqui para, na semana que vem, voltar a contar-vos mais. Deal?
Abraço!
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
PARA UMA MENINA COM UMA FLOR, ONTEM E HOJE
...ler pela primeira vez um grande livro na idade madura
é um prazer extraoridinário: diferente (mas não se pode dizer
maior ou menor) daquele que tivemos ao lê-lo na juventude.
Italo Calvino (Porque ler os clássicos)
Já fará dois ou três anos que a Jane, minha sogra, me deu a coleção Vinicius de Moares: obras escolhidas, em quatro volumes, publicação de 1983 da Livraria José Olympio Editora (Rio de Janeiro). Tão logo os recebi, usei parte de um dos livros, Livro de Sonetos, num trabalho que desenvolvia sobre essa forma poemática com uma turma de segundo ano do Ensino Médio. Depois, deixei-os na estante, quietinhos a esperar por mim. Na última sexta-feira, como devesse acompanhar alguns alunos à Feira do Livro de Porto Alegre, meti, já de saída, um dos livrinhos na mochila, sabendo que nas quase duas horas de viagem (entre ida e volta no percurso Charqueadas–Porto Alegre) eu teria de ocupar-me com algo (e sempre gostei de ler em ônibus: fazia-o mesmo quando, na hora do pique, tinha de viajar em pé, nos tempos de estudante em Porto Alegre).
Começada a viagem, meti a mão na mochila e puxei o volume estreito, de capa dura e avermelhada. Abri-o e li o título: Para uma menina com uma flor. Trata-se, caso o leitor desconheça (e não há, penso, problema algum em desconhecê-lo: tantas coisas desconhecemos), de uma coletânea de crônicas e pequenos contos que o autor escreveu para periódicos como Última Hora, Diário Carioca, Manchete, Fatos e Fotos, etc. Está a obra dividida em dois períodos: (i) 1941-1953, e (ii) 1964-1966. Lidos o “Prefácio à 1ª edição” e o poema-dedicatória “A brusca poesia da mulher amada”, decidi pular à página 93 e iniciar a leitura pelo segundo período, justamente a partir da crônica “Para uma menina com uma flor”. Quando chegávamos de volta à escola, eu quase imediatamente concluía a leitura dessas crônicas dos anos 60. No fim de semana, li aquelas do primeiro período.
Mas por que estou mencionando isso tudo assim com tantos detalhes? Que dirão tais coisas ao paciente leitor que, até o momento, só não interrompeu a leitura porque é pessoa educada e persistente? Pois vejamos se posso interessá-lo.
Como do Vinicius eu apenas conhecesse o que quase todo mundo conhece, i. é, boa parte do cancioneiro e alguns poucos sonetos: “De repente do riso fez-se o pranto...” (Soneto de separação), ou “De tudo, ao meu amor serei atento...” (Soneto de fidelidade), ou ainda “Oh, partir pela noite enluarada...” (Soneto de Oxford) – abri aquele livrinho de crônicas escolhidas como quem fosse provar um prato, um doce, um sabor novo (sabor esse, é verdade, que de saída, e sem conhecê-lo ainda, já nos dispomos não obstante a apreciar favoravelmente).
Contudo, à medida que ia lendo aquela “prosa fiada” (como o mesmo Vinicius se refere a crônica em geral), me dava conta de que já a conhecia, e aí algo maravilhoso, algo sublime e instigante se deu: tive a certeza de que já havia lido aquilo tudo! Conhecerá decerto o leitor a sensação que nos invade quando um aroma esquecido nos remete a uma referência escondida in the back of the mind, ou quando uma música, ou filme, ou uma paisagem vem evocar em nós a lembrança de algo ou alguém que guardávamos dentro de nós mesmos sem saber que o fazíamos. Pois foi exatamente essa a sensação inefável que me tomou naquele momento, em que eu me reencontrava com um Conrado que pensava já não mais existir, ou, melhor dizendo, que, no estado atual de minhas percepções, nem sequer suspeitava que jamais houvesse existido. Que com o tempo vamos mudando, isso todos bem sabemos; porém, que aquela parte de nós que deixamos para trás cai às vezes no mais completo esquecimento, disso pouco cogitamos. Apenas quando esse “nós”, esse “eu” renasce, é que nos damos conta de que nos havíamos inteiramente esquecido dele.
Mas que Conrado era esse e quando exatamente ele existiu?
Quero crer que era um adolescente, aluno do Ensino Médio (ou Segundo Grau, como então se chamava). Já tocava seu violãozinho, e Vinicius de Moraes era uma de suas fortes referências, juntamente com Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim e tantos outros compositores (ou cantautores, como tão bem se diz em espanhol e italiano). É provável que tenha tomado emprestado o livro da biblioteca, se não foi um dos seus amigos, possivelmente o João, que lhe tenha alcançado a obra. Ah, que alegria reencontrar aquela leitura e, através dela, aquele leitor que um dia fui!
Vejamos se um exemplo pode ajudar a explicar-me melhor. Em “Conto rápido”, a personagem principal, uma sedutora mulher, “apertada num maiô azul”, desmaia na praia ao saber que o mar levara seu filho, e o texto se conclui assim: “afrouxada sobre a areia branca, seu corpo fazia uma graciosa mancha azul”. Esse desfecho, com essas palavras, me pegou de um jeito quando era adolescente, que não pude deixá-lo em paz (ou ele a mim) e, tão logo pude, copiei descaradamente a ideia do poetinha nestes versos que são parte de uma canção que escrevi para a Luciana, uma prima muito querida: “Uma menina, uma cicatriz / Deitada na areia do sonho que fiz”. Não há azul algum aí, é claro, nem a personagem da canção se apresentava como sedutora (era antes uma criança, uma menina). Porém, foram esses versos meus (bons ou maus, não entremos agora no mérito) buscados ali naquele texto do Vinicius de Moraes por um Conrado adolescente e, na época, aspirante a “cantautor”. Ora, e disso me lembrei ali, naquele momento, enquanto o ônibus nos balançava rumo a Porto Alegre.
Outras lembranças tive, associadas àquela leitura, mas sempre coisas assim esparsas, que me vinham de súbito aqui e ali. Ah, a emoção do reencontro, e quando justamente acreditava desconhecer o que me propunha a ler!
Mas, se houve reencontro, houve também descoberta. Era o mesmo livro do Vinicius de Moraes, mas era também um novo livro, pois este leitor, o de quarenta e tantos anos que hoje sou, não somente conhece bem melhor a expressão, mas também boa parte das referências ali feitas, aquilo que chamamos “conhecimento de mundo”, lhe é agora bem mais amplamente acessível.
Se, como escreveu Italo Calvino, “um clássico é um livro que não termina nunca de dizer o que tem a dizer-nos”, podemos (ou, pelo menos, eu posso) considerar Para uma menina com uma flor uma referência clássica. Saravá, Vinicius!
Este texto, porque trata de leitura e leitores, queria humildemente dedicá-lo à grande leitora que foi a vó Albertina. Ela acaba de nos deixar, mas eu vou guardar para sempre, e com muito carinho, a lembrança de nossas conversas sobre livros, autores e mais tantas outras histórias.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (2ª e última parte)
Devo recordar as dificuldades específicas que, enquanto italiano, encontro em minhas relações tanto com o mundo quanto com a linguagem, quero dizer, enquanto escritor num país que apresenta contínuas frustrações a quem procure compreendê-lo. A Itália é um país onde se verificam muitas histórias misteriosas, as quais são amplamente discutidas e comentadas diariamente mas a cuja solução não se chega nunca. É um país onde cada acontecimento esconde uma conspiração secreta, que assim secreta permanece, onde nenhuma história chega ao fim porque dela não se sabe o início, ainda que nos deleitem os infinitos detalhes que se acham entre início e fim. A sociedade italiana vive mudanças muito rápidas, mesmo nos costumes, no comportamento: tão rápidas que não chegamos a compreender em que direção nos movemos, e cada fato novo tende a desaparecer, aniquilado pela avalanche de recriminações e por alarmes de degradação e de catástrofe, ou então por declarações que se apoiam em nossa tradicional habilidade de desembaraço e sobrevivência.
Eis por que as histórias que podemos contar se veem marcadas, de um lado, pelo sentido do desconhecido e, de outro, por uma necessidade de construção, de linhas traçadas com exatidão, de harmonia e geometria. É esse o nosso modo de reagir às areias movediças que sentimos debaixo dos pés.
Quanto à linguagem, essa foi atingida por uma espécie de peste. O italiano está se tornando uma língua sempre mais abstrata, artificial, ambígua. As coisas mais simples nunca são ditas diretamente, e os substantivos concretos são sempre usados mais raramente. Essa epidemia atingiu primeiramente os políticos, os burocratas, os intelectuais, e depois se generalizou, estendendo-se a grupos sempre mais amplos no que se refira a uma consciência política e intelectual. A tarefa do escritor é, pois, combater essa peste, fazendo sobreviver uma linguagem direta e concreta. O problema, porém, é que a linguagem cotidiana, que até recentemente era a fonte viva a que podiam sempre recorrer os escritores, essa linguagem hoje não está imune à infecção.
Em suma, creio que os italianos nos encontremos hoje na situação ideal para atrelar nossa atual dificuldade em escrever romances a reflexões gerais sobre a linguagem e o mundo.
Uma importante tendência internacional na cultura de nosso século – a qual poderíamos chamar de “abordagem fenomenológica” em filosofia e de “efeito de estranhamento” em literatura – nos impele a romper essa tela de palavras e conceitos e, assim, a ver o mundo como se este se apresentasse pela primeira vez ao nosso olhar. Mas o que ocorre quando busco esvaziar minha mente e lançar sobre a paisagem um olhar livre de toda referência cultural precedente? Percebo que nossa vida é como que programada para a leitura à medida que fico sempre procurando ler a paisagem, o prado, as ondas do mar. Essa programação não quer dizer que nossos olhos se encontrem obrigados a seguir um instintivo movimento horizontal da esquerda para a direita, depois de novo à esquerda um pouco mais abaixo, e assim por diante. (Naturalmente, falo aqui de olhos programados a ler páginas ocidentais; olhos japoneses, por exemplo, usariam um programa vertical.) Ler, mais do que um exercício óptico, é antes um processo que envolve mente e olhos conjuntamente. Trata-se de um processo de abstração ou, melhor, uma extração de concretude a partir de operações abstratas: é o reconhecimento de signos distintivos, o despedaçamento de tudo quanto vemos em elementos mínimos, para a seguir recompô-los em segmentos significativos e, assim, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças, recorrências, singularidades, substituições, redundâncias.
A comparação entre o mundo e um livro tem já uma longa história, que vem da Idade Média e do Renascimento. Em que linguagem está escrito o livro do mundo? Segundo Galileu, tratar-se-ia da linguagem da matemática e da geometria, uma linguagem de absoluta exatidão. Mas é desse modo que ainda podemos ler o mundo de hoje? Talvez sim, caso se trate do extremamente longínquo: galáxias, quasares, supernovas. Contudo, nosso mundo cotidiano se nos apresenta escrito antes como num mosaico de linguagens, como um muro grafitado, repleto de escritas traçadas umas sobre as outras, uma espécie de palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito muitas vezes, algo como uma colagem de Schwitters, uma estratificação de alfabetos, de citações heterogêneas, de gírias, de ágeis caracteres, como os que aparecem na tela de um computador.
E pergunto: é uma mimese dessa linguagem do mundo que devemos buscar alcançar? Isso fizeram alguns dos mais importantes escritores do nosso século: podemos encontrar exemplos dessa abordagem nos Cantos, de Erza Pound, ou em Joyce, ou mesmo em alguma vertiginosa página de Gadda, sempre seduzido pela obsessão de unir cada detalhe ao universo inteiro.
Mas será mesmo a mimese o caminho certo? Parti da oposição inconciliável entre mundo escrito e não escrito; ora, se as suas linguagens se fundem, o meu raciocínio cai por terra. O verdadeiro desafio para um escritor é falar do intrincado emaranhado de nossa situação usando uma linguagem que pareça tão transparente a ponto de criar um sentido de alucinação, como conseguiu fazer Kafka.
Talvez a primeira operação para que se renove uma relação entre linguagem e mundo seja a mais simples: fixar a atenção sobre um objeto qualquer, o mais banal e familiar, e então descrevê-lo minuciosamente, como se fosse a coisa mais nova e mais interessante do universo.
Uma das lições que podemos extrair da poesia do nosso século é o investimento de toda a nossa atenção, de todo o nosso amor pelo detalhe em algo que esteja muito distante de qualquer imagem humana: um objeto ou planta ou animal em que se identifique o nosso sentido da realidade, a nossa moral, o nosso eu, como fez William Carlos Williams com um cíclame, ou Marianne Moore com um náutilo, ou ainda Eugenio Montale com uma enguia.
Na França, desde que Francis Ponge começou a escrever poesias em prosa sobre singelos objetos como uma barra de sabão ou um pedaço de carvão, o problema da “coisa em si” continuou a marcar a investigação literária, passando por Sartre e Camus, até alcançar sua expressão máxima na descrição de um quarto de quilo de tomate, realizada por Robbe-Grillet. Mas penso que a última palavra não tenha ainda sido dita. Recentemente, na Alemanha, Peter Handke escreveu um romance baseado inteiramente em paisagens. E mesmo na Itália uma abordagem visual é o elemento comum de alguns dos novos escritores que tenho lido.
O meu interesse pelas descrições se deveu também ao fato de que meu último livro, Palomar, contém muitas descrições. Procuro fazer de modo que a descrição se torne narração, ainda que não deixe de ser descrição. Em cada uma dessas minhas breves histórias, um personagem pensa apenas com base naquilo que vê e desconfia de todo pensamento que lhe venha de outros modos. O meu problema ao escrever esse livro foi que nunca tinha sido aquilo que se chamaria um “observador”. Portanto, a primeira operação que tive de fazer foi justamente concentrar minha atenção sobre algo para, em seguida, descrevê-lo ou, melhor dizendo, fazer essas duas coisas ao mesmo tempo, uma vez que, não sendo eu um observador, se por exemplo vejo uma iguana no zoológico e não escrevo imediatamente tudo o que vi, corro o risco de esquecer-me de como era o bicho.
Devo dizer que a maior parte dos livros que escrevi, assim como a daqueles que tenho em mente escrever, nasce da ideia de que escrever um livro assim me pareça a princípio impossível. Porém, quando estou convencido de que um certo tipo de livro está completamente além das possibilidades de meu temperamento e de minhas capacidades técnicas, é justamente quando me sento à escrivaninha e me ponho a escrevê-lo.
Isso aconteceu com meu romance Se uma noite de inverno um viajante: comecei imaginando todos os tipos de romance que jamais escreveria. A seguir, tentei escrevê-los, procurando evocar dentro de mim mesmo a energia criativa de dez diferentes romancistas imaginários.
Um outro livro que estou escrevendo trata dos cinco sentidos. Nele busco demonstrar que o homem contemporâneo não perdeu o uso desses sentidos. O meu problema ao escrever esse livro é que meu olfato não é lá muito desenvolvido, falta-me atenção auditiva, estou longe de ser um gourmet, minha sensibilidade tátil é bastante imprecisa e, ainda por cima, sou inteiramente míope. Em cada um dos cinco sentidos devo, portanto, fazer um esforço tal, que me permita dominar uma gama de sensações e nuances. Não sei se conseguirei, mas neste caso, como nos outros, meu escopo não é tanto o de fazer um livro quanto o de mudar a mim mesmo, escopo que penso deva ser aquele de toda empresa humana.
Pode o leitor objetar que prefere os livros que tragam uma experiência verdadeira, obtida integralmente. Pois bem, assim também eu prefiro. Mas, na minha experiência, entendo que o estímulo para escrever está sempre ligado à falta de algo que eu gostaria de conhecer e possuir, algo fugidio, esquivo. E, como conheço bem esse tipo de estímulo, penso poder percebê-lo também nos grandes escritores, cujas vozes parecem alcançar-nos desde o cume de uma experiência absoluta. O que esses autores nos transmitem é o sentido da aproximação da experiência, mais do que o sentido da experiência efetivamente alcançada. O segredo, me parece, é saber conservar intacta a força do desejo.
Julgo que de certo modo sempre escrevemos sobre algo que não sabemos: escrevemos a fim de que o mundo não escrito possa exprimir-se através de nós. No momento em que minha atenção se desloca da ordem regular das linhas escritas e segue a complexidade móvel que nenhuma frase pode conter ou exaurir, me sinto próximo de entender que do outro lado das palavras existe algo que procura sair do silêncio, algo que busca significar através da linguagem, como se desse golpes numa parede de prisão.
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (1ª parte)
O texto a seguir, cujo título é o que vai aí acima, é do autor italiano Italo Calvino (1923-1985). É a forma escrita de uma conferência lida pelo autor no Institute for the Humanities da Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Foi publicado no mesmo ano no "The New York Review of Books" e, em 1985, na revista "Letteratura Internazionale". A versão de que disponho é aquela que se encontra às páginas 114-125 do livro Mondo scritto e mondo non scrito (Milão: Oscar Mondadori, 2002).
Os leitores que se interessarem em ter o texto original, sobretudo aqueles que, como Sandra Dall'Onder, Deise Quintana e Raquel Benvenutti (professoras da ACIRS), conhecem muito melhor do que eu a língua italiana, escrevam-me, que o tenho digitalizado. Agradeceria se me apontassem erros, de modo que possa sempre melhorar esta tradução.
Publico-o em duas partes, porque há leitores que já me reclamaram da extensão dos textos aqui publicados. (Ah! leitores de pouca fé! Talvez, muito mais provável, de pouco tempo mesmo.)
Vamos ao Calvino.
Pertenço
àquela parte da humanidade – uma minoria em escala planetária,
mas, creio eu, uma maioria entre o meu público – que passa grande
parte de suas horas de vigília num mundo especial, um mundo feito de
linhas horizontais, no qual as palavras se sucedem uma após a outra,
em que cada frase e cada parágrafo ocupam seu lugar estabelecido: um
mundo que pode ser muito rico, talvez ainda mais rico do que aquele
não escrito, mas que em todo caso requer um ajustamento especial
para que nos situemos em seu interior. Quando me desprendo do mundo
escrito para encontrar meu lugar no outro, naquele que costumamos
chamar de o mundo,
feito
de
três
dimensões,
cinco
sentidos,
povoado
de
nossos
semelhantes,
isso
para mim equivale
sempre a
repetir
o
trauma
do
nascimento,
a
dar
forma
de
realidade
inteligível
a
um
conjunto
de
sensações
confusas,
a
escolher
uma
estratégia
para
fazer
face
ao
inesperado
sem
ser
destruído.
Esse
novo
nascimento
se
faz
sempre acompanhar
de
ritos
especiais,
que
significam
o
ingresso
numa
vida
diversa:
por
exemplo,
o
rito
de
pôr
os
óculos,
uma
vez
que,
sendo
míope,
leio
sem
eles,
ao
passo
que
para
a
maioria
presbita
é
o
rito
oposto
que
se
impõe,
ou
seja,
retirar
os
óculos
que
se
usam
apenas
para
a leitura.
Cada
rito
de
passagem
corresponde
a
uma
mudança
de
atitude
mental:
quando
leio,
cada
frase
deve
ser
compreendida,
ao
menos
em
seu
significado
literal,
devendo
pôr-me
em
condições
de
formular
um
juízo:
o
que
li
é
verdadeiro
ou
falso,
certo
ou
errado,
agradável
ou
não.
Na
vida
ordinária,
ao
contrário,
se
apresentam
sempre
inúmeras
circunstâncias
que
fogem
a
meu
entendimento,
desde
as
mais
gerais
até
as
mais
banais:
encontro-me
com
frequência
frente
a
situações
sobre
as
quais
não
saberia
pronunciar-me,
sobre
as
quais
prefiro
suspender
o
julgamento.
Enquanto
espero
que
o
mundo
não
escrito
se
esclareça
a
meus
olhos,
há
sempre
uma
página
escrita
ao
alcance
da
mão,
na
qual
posso
voltar
a
imergir;
e
me
apresso
a
fazê-lo,
com
a
maior
satisfação:
nesta
ao
menos,
ainda
que
consiga
compreender
tão
somente
uma
pequena
parte
do
conjunto,
posso
sempre
cultivar
a
ilusão
de
ter
tudo
sob
controle.
Creio
que
mesmo
na
minha
juventude
as
coisas
tenham sido assim,
mas
naquela
época
tinha
eu a
ilusão
de
que
mundo
escrito
e
mundo
não
escrito
se
iluminassem
reciprocamente, que
as
experiências
de
vida
e
as
experiências
de
leitura
fossem
de
certo
modo
complementares
e
que
a
cada
passo
avançado
num
campo
correspondesse
um
passo
à
frente
no
outro.
Hoje
posso
dizer
que
do
mundo
escrito
conheço
já
o bastante:
no
interior
dos
livros,
a
experiência
é
sempre
possível,
mas
seu
alcance
não
se
estende
além
da
margem
branca
da
página.
Em
contrapartida,
o
que
sucede
no
mundo
que
me
circunda
não
acaba
de
surpreender-me,
de
espantar-me,
de
desorientar-me. Tenho
assistido
a
muitas
mudanças
na
minha
vida,
no
vasto
mundo,
na
sociedade,
e
a
muitas
mudanças
até
em
mim
mesmo;
porém,
não
consigo
prever
nada,
nem
no que se refira a
mim mesmo,
nem
no que diga respeito às
pessoas
que
conheço,
nem,
muito
menos,
quanto ao
gênero
humano.
Não
saberia
prever
as
relações
futuras
entre
os
sexos,
entre
as
gerações,
os
desenvolvimentos
futuros
da
sociedade,
das
cidades
e
das
nações,
que
tipo
de
paz
haverá
ou
que
tipo
de
guerra,
que
coisa
significará
o
dinheiro,
quais
objetos
de
uso
cotidiano
desaparecerão
e
quais
novos
aparecerão,
que
tipo
de
veículos
e
de
maquinário
se
usarão,
qual
será
o
futuro
do
mar,
dos
rios,
dos
animais,
das
plantas.
Sei
bem
que
compartilho
essa
ignorância
com
aqueles
que,
ao
contrário,
pretendem
saber:
economistas,
sociólogos,
políticos;
mas
o
fato
de
não
encontrar-me
sozinho
nessa
ignorância
não
me
serve
de
consolo
algum.
Pode
dar-me
algum
consolo
o
pensamento
de
que
a
literatura
sempre
compreendeu
alguma
coisa
mais
que
as
outras
disciplinas,
mas
isso
me
faz
recordar
que
os
antigos
viam
nas
letras
uma
escola
de
sabedoria,
e
então
me
dou
conta
de
quanto
hoje
toda
ideia
de
sabedoria
seja
inatingível.
Neste
ponto
o
leitor
me
perguntará:
se
dizes
que
teu
verdadeiro
mundo
é
a
página
escrita,
se
apenas
aí
te
sentes
à
vontade,
por
que
hás de sair então desse
mundo,
por
que
tens
de
aventurar-te
neste
vasto
mundo
que
não
estás
em
condições
de
dominar?
A
resposta
é
simples:
para
escrever.
Porque
sou
um
escritor.
O
que
se
espera
de
mim
é
que
eu
olhe
em
torno
a
mim
e
capture
rápidas
imagens
do
que
sucede,
para
em
seguida
debruçar-me
sobre
minha
escrivaninha
e
retomar
o
trabalho.
É
para
recolocar
em
movimento
a
minha
fábrica
de
palavras
que
devo
extrair
novo
combustível
dos
poços
do
não
escrito.
Mas
procuremos
ver
melhor
como
andam as
coisas.
É
assim
mesmo
que
ocorre?
As
principais
correntes
filosóficas
do
momento
dizem
que
não,
que
nada
disso
é
verdadeiro.
A
mente
do
escritor
é
obcecada pelas
contrastantes
posições
de
duas
correntes
filosóficas.
A
primeira
diz
que
o
mundo
não
existe;
existe
apenas
a
linguagem.
A
segunda
diz
que
a
linguagem
comum
não
tem
sentido;
o
mundo
é
inefável.
De
acordo
com
a
primeira,
a
espessura
da
linguagem
se
eleva
acima
de
um
mundo
feito
de
sombra;
de
acordo
com
a
segunda,
é
o
mundo
que
se
põe
altaneiro,
como
uma
muda
esfinge
de
pedra,
sobre
um
deserto
de
palavras
que
se
parecem
à
areia
que
o
vento
leva.
A
primeira
corrente
estabeleceu
suas
fontes
principais
na
Paris
dos
últimos
vinte
e
cinco
anos;
a
segunda
decorre
do
início
do
século,
partindo
de
Viena,
e,
passando por
várias
transmigrações,
readquiriu
atualidade
em
anos
recentes
mesmo
na
Itália.
Ambas
as
filosofias
têm
em
si
fortes
razões.
Ambas
representam
um
desafio
ao
escritor:
a
primeira
exige
o
uso
de
uma
linguagem
que
responda
apenas
a
si
mesma,
às
suas
leis
internas;
a
segunda,
o
uso
de
uma
linguagem
que
possa
fazer
frente
ao
silêncio
do
mundo.
Ambas
exercem
sobre
mim
seu
fascínio
e
sua
influência.
Isso
significa
que
acabo
não
seguindo
uma
nem
outra,
não
crendo
numa
nem
na
outra.
Em
que
creio,
então?
Vejamos
um
momento
se
posso
tirar
alguma
vantagem
dessa
difícil
situação.
Antes
de
tudo,
se
sentimos
assim
intensamente
a
incompatibilidade
entre
o
escrito
e
o
não
escrito,
é
porque
somos
muito
mais
conscientes
do
que
seja
o
mundo
escrito:
não
podemos
esquecer-nos
nem
mesmo
por
um
átimo
de
que
é
um
mundo
feito
de
palavras,
usadas
de
acordo
com
as
técnicas
e
as
estratégias
próprias
da
linguagem,
conforme
os
sistemas
especiais
em
que
se
organizam
os
significados
e
as
relações
entre
significados.
Temos
consciência
de
que,
quando
nos
contam
uma
história
(e
quase
todos
os
textos
escritos
contam
uma
história,
mesmo
um
ensaio
filosófico,
mesmo
um
balanço
de
sociedade
anônima,
mesmo
uma
receita
de
cozinha),
essa
história
é
mobilizada
a
partir
de
um
mecanismo,
similar
aos
mecanismos
de
toda e qualquer
história.
Esse
é
um
grande
passo
à
frente:
hoje
temos
condições
de
evitar
muitas
confusões
entre
o
que
é
linguístico
e
o
que
não
é,
e
assim
podemos
ver
claramente
as
relações
que
se
interpõem
entre
os
dois
mundos.
Não
me
resta
senão
fazer
a
contraprova
e
verificar
que
o
mundo
externo
está
sempre
lá
e
não
depende
das
palavras,
sendo
antes
irredutível
às
palavras,
não
havendo
linguagem
ou
escritura
que
possa
exauri-lo.
Basta-me
voltar
as
costas
às
palavras
depositadas
nos
livros,
enfiar-me
no
mundo
de
fora,
esperando
alcançar
o
coração
do
silêncio,
o
verdadeiro
silêncio
cheio
de
significado...
Mas
qual
é
o
caminho
para
alcançá-lo?
Há
quem,
para
ter
um
contato
com
o
mundo
de
fora,
se
limite
a
comprar
um
jornal
toda
manhã.
Eu
não
sou
assim
ingênuo.
Sei
que
dos
jornais
posso
extrair
apenas
uma
leitura
do
mundo
feita
por
outros,
ou
antes
feita
por
uma
máquina
anônima,
especializada
em
escolher
da
poeira
infinita
de
eventos
aqueles
que
podem
ser
selecionados
como
“notícia”.
Outros,
a
fim
de
fugir
do
mundo
escrito,
ligam
a
televisão.
Mas
eu
sei
que
todas
as
imagens,
mesmo
aquelas
colhidas
ao
vivo,
fazem
parte
de
um
discurso
construído,
exatamente
iguais
àquelas
dos
jornais.
Portanto,
sem
comprar
o
jornal,
sem
ligar
a
televisão,
me
limitarei
a
sair
e
andar
a
passear.
Mas
cada
coisa
que
vejo
nas
ruas
da
cidade
tem
já
seu
lugar
no
contexto
da
informação
homogeneizada.
Esse
mundo
que
vejo,
aquele
que
se
reconhece
normalmente
como
o mundo,
se
apresenta
a
meus
olhos
– pelo
menos
em
grande
parte
– já
conquistado,
colonizado
pelas
palavras, é
um
mundo
que
traz consigo uma
pesada
crosta
de
discurso.
Os
fatos
de
nossa
vida
estão
já
classificados,
julgados,
comentados, e
antes
mesmo
que
ocorram.
Vivemos
num
mundo
em
que
tudo
já está
lido
antes
mesmo
que
venha
a
existir.
Não
apenas
tudo
o
que
vemos,
mas
os
nossos
próprios
olhos
estão
saturados
de
linguagem
escrita. O hábito da leitura
transformou ao longo dos séculos o homo sapiens
em homo legens, mas
esse homo legens não
é necessariamente mais sapiente do que antes. O homem que não lia
sabia ver e ouvir uma quantidade de coisas que nós já não
percebemos: as pegadas do animal que caçava, os sinais da chuva ou
do vento que se aproximava; e ele reconhecia as horas do dia a partir
da sombra de uma árvore e as da noite ao considerar a altura das
estrelas sobre o horizonte. E quanto à audição, o olfato, o
paladar, o tato, a sua superioridade sobre nós não pode ser posta
em dúvida.
Isso dito, é preciso esclarecer que não venho aqui propor o retorno
ao analfabetismo a fim de que se recupere o saber das tribos
paleolíticas. Lastimo tudo o que possamos haver pedido, mas não me
esqueço jamais de que os ganhos superam as perdas. O que busco
entender é o que podemos fazer hoje.
(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)
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