LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (2ª e última parte)

Devo recordar as dificuldades específicas que, enquanto italiano, encontro em minhas relações tanto com o mundo quanto com a linguagem, quero dizer, enquanto escritor num país que apresenta contínuas frustrações a quem procure compreendê-lo. A Itália é um país onde se verificam muitas histórias misteriosas, as quais são amplamente discutidas e comentadas diariamente mas a cuja solução não se chega nunca. É um país onde cada acontecimento esconde uma conspiração secreta, que assim secreta permanece, onde nenhuma história chega ao fim porque dela não se sabe o início, ainda que nos deleitem os infinitos detalhes que se acham entre início e fim. A sociedade italiana vive mudanças muito rápidas, mesmo nos costumes, no comportamento: tão rápidas que não chegamos a compreender em que direção nos movemos, e cada fato novo tende a desaparecer, aniquilado pela avalanche de recriminações e por alarmes de degradação e de catástrofe, ou então por declarações que se apoiam em nossa tradicional habilidade de desembaraço e sobrevivência.

Eis por que as histórias que podemos contar se veem marcadas, de um lado, pelo sentido do desconhecido e, de outro, por uma necessidade de construção, de linhas traçadas com exatidão, de harmonia e geometria. É esse o nosso modo de reagir às areias movediças que sentimos debaixo dos pés.

Quanto à linguagem, essa foi atingida por uma espécie de peste. O italiano está se tornando uma língua sempre mais abstrata, artificial, ambígua. As coisas mais simples nunca são ditas diretamente, e os substantivos concretos são sempre usados mais raramente. Essa epidemia atingiu primeiramente os políticos, os burocratas, os intelectuais, e depois se generalizou, estendendo-se a grupos sempre mais amplos no que se refira a uma consciência política e intelectual. A tarefa do escritor é, pois, combater essa peste, fazendo sobreviver uma linguagem direta e concreta. O problema, porém, é que a linguagem cotidiana, que até recentemente era a fonte viva a que podiam sempre recorrer os escritores, essa linguagem hoje não está imune à infecção.

Em suma, creio que os italianos nos encontremos hoje na situação ideal para atrelar nossa atual dificuldade em escrever romances a reflexões gerais sobre a linguagem e o mundo.

Uma importante tendência internacional na cultura de nosso século – a qual poderíamos chamar de “abordagem fenomenológica” em filosofia e de “efeito de estranhamento” em literatura – nos impele a romper essa tela de palavras e conceitos e, assim, a ver o mundo como se este se apresentasse pela primeira vez ao nosso olhar. Mas o que ocorre quando busco esvaziar minha mente e lançar sobre a paisagem um olhar livre de toda referência cultural precedente? Percebo que nossa vida é como que programada para a leitura à medida que fico sempre procurando ler a paisagem, o prado, as ondas do mar. Essa programação não quer dizer que nossos olhos se encontrem obrigados a seguir um instintivo movimento horizontal da esquerda para a direita, depois de novo à esquerda um pouco mais abaixo, e assim por diante. (Naturalmente, falo aqui de olhos programados a ler páginas ocidentais; olhos japoneses, por exemplo, usariam um programa vertical.) Ler, mais do que um exercício óptico, é antes um processo que envolve mente e olhos conjuntamente. Trata-se de um processo de abstração ou, melhor, uma extração de concretude a partir de operações abstratas: é o reconhecimento de signos distintivos, o despedaçamento de tudo quanto vemos em elementos mínimos, para a seguir recompô-los em segmentos significativos e, assim, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças, recorrências, singularidades, substituições, redundâncias.

A comparação entre o mundo e um livro tem já uma longa história, que vem da Idade Média e do Renascimento. Em que linguagem está escrito o livro do mundo? Segundo Galileu, tratar-se-ia da linguagem da matemática e da geometria, uma linguagem de absoluta exatidão. Mas é desse modo que ainda podemos ler o mundo de hoje? Talvez sim, caso se trate do extremamente longínquo: galáxias, quasares, supernovas. Contudo, nosso mundo cotidiano se nos apresenta escrito antes como num mosaico de linguagens, como um muro grafitado, repleto de escritas traçadas umas sobre as outras, uma espécie de palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito muitas vezes, algo como uma colagem de Schwitters, uma estratificação de alfabetos, de citações heterogêneas, de gírias, de ágeis caracteres, como os que aparecem na tela de um computador.

E pergunto: é uma mimese dessa linguagem do mundo que devemos buscar alcançar? Isso fizeram alguns dos mais importantes escritores do nosso século: podemos encontrar exemplos dessa abordagem nos Cantos, de Erza Pound, ou em Joyce, ou mesmo em alguma vertiginosa página de Gadda, sempre seduzido pela obsessão de unir cada detalhe ao universo inteiro.

Mas será mesmo a mimese o caminho certo? Parti da oposição inconciliável entre mundo escrito e não escrito; ora, se as suas linguagens se fundem, o meu raciocínio cai por terra. O verdadeiro desafio para um escritor é falar do intrincado emaranhado de nossa situação usando uma linguagem que pareça tão transparente a ponto de criar um sentido de alucinação, como conseguiu fazer Kafka.

Talvez a primeira operação para que se renove uma relação entre linguagem e mundo seja a mais simples: fixar a atenção sobre um objeto qualquer, o mais banal e familiar, e então descrevê-lo minuciosamente, como se fosse a coisa mais nova e mais interessante do universo.

Uma das lições que podemos extrair da poesia do nosso século é o investimento de toda a nossa atenção, de todo o nosso amor pelo detalhe em algo que esteja muito distante de qualquer imagem humana: um objeto ou planta ou animal em que se identifique o nosso sentido da realidade, a nossa moral, o nosso eu, como fez William Carlos Williams com um cíclame, ou Marianne Moore com um náutilo, ou ainda Eugenio Montale com uma enguia.

Na França, desde que Francis Ponge começou a escrever poesias em prosa sobre singelos objetos como uma barra de sabão ou um pedaço de carvão, o problema da “coisa em si” continuou a marcar a investigação literária, passando por Sartre e Camus, até alcançar sua expressão máxima na descrição de um quarto de quilo de tomate, realizada por Robbe-Grillet. Mas penso que a última palavra não tenha ainda sido dita. Recentemente, na Alemanha, Peter Handke escreveu um romance baseado inteiramente em paisagens. E mesmo na Itália uma abordagem visual é o elemento comum de alguns dos novos escritores que tenho lido.

O meu interesse pelas descrições se deveu também ao fato de que meu último livro, Palomar, contém muitas descrições. Procuro fazer de modo que a descrição se torne narração, ainda que não deixe de ser descrição. Em cada uma dessas minhas breves histórias, um personagem pensa apenas com base naquilo que vê e desconfia de todo pensamento que lhe venha de outros modos. O meu problema ao escrever esse livro foi que nunca tinha sido aquilo que se chamaria um “observador”. Portanto, a primeira operação que tive de fazer foi justamente concentrar minha atenção sobre algo para, em seguida, descrevê-lo ou, melhor dizendo, fazer essas duas coisas ao mesmo tempo, uma vez que, não sendo eu um observador, se por exemplo vejo uma iguana no zoológico e não escrevo imediatamente tudo o que vi, corro o risco de esquecer-me de como era o bicho.

Devo dizer que a maior parte dos livros que escrevi, assim como a daqueles que tenho em mente escrever, nasce da ideia de que escrever um livro assim me pareça a princípio impossível. Porém, quando estou convencido de que um certo tipo de livro está completamente além das possibilidades de meu temperamento e de minhas capacidades técnicas, é justamente quando me sento à escrivaninha e me ponho a escrevê-lo.

Isso aconteceu com meu romance Se uma noite de inverno um viajante: comecei imaginando todos os tipos de romance que jamais escreveria. A seguir, tentei escrevê-los, procurando evocar dentro de mim mesmo a energia criativa de dez diferentes romancistas imaginários.

Um outro livro que estou escrevendo trata dos cinco sentidos. Nele busco demonstrar que o homem contemporâneo não perdeu o uso desses sentidos. O meu problema ao escrever esse livro é que meu olfato não é lá muito desenvolvido, falta-me atenção auditiva, estou longe de ser um gourmet, minha sensibilidade tátil é bastante imprecisa e, ainda por cima, sou inteiramente míope. Em cada um dos cinco sentidos devo, portanto, fazer um esforço tal, que me permita dominar uma gama de sensações e nuances. Não sei se conseguirei, mas neste caso, como nos outros, meu escopo não é tanto o de fazer um livro quanto o de mudar a mim mesmo, escopo que penso deva ser aquele de toda empresa humana.

Pode o leitor objetar que prefere os livros que tragam uma experiência verdadeira, obtida integralmente. Pois bem, assim também eu prefiro. Mas, na minha experiência, entendo que o estímulo para escrever está sempre ligado à falta de algo que eu gostaria de conhecer e possuir, algo fugidio, esquivo. E, como conheço bem esse tipo de estímulo, penso poder percebê-lo também nos grandes escritores, cujas vozes parecem alcançar-nos desde o cume de uma experiência absoluta. O que esses autores nos transmitem é o sentido da aproximação da experiência, mais do que o sentido da experiência efetivamente alcançada. O segredo, me parece, é saber conservar intacta a força do desejo.

Julgo que de certo modo sempre escrevemos sobre algo que não sabemos: escrevemos a fim de que o mundo não escrito possa exprimir-se através de nós. No momento em que minha atenção se desloca da ordem regular das linhas escritas e segue a complexidade móvel que nenhuma frase pode conter ou exaurir, me sinto próximo de entender que do outro lado das palavras existe algo que procura sair do silêncio, algo que busca significar através da linguagem, como se desse golpes numa parede de prisão.

Um comentário:

  1. amadas/os:
    confesso que, quando comecei a ler, não lembrava de quem era o texto magistralmente traduzido. mas não podia estar longe, italiano. depois, ao ver a referência a "Se um viajante numa noite de inverno", ou o que o valha, bateu. Pimba: é Ítalo Calvino. então procurei por este nome a postagem antiga:
    "Autor italiano Italo Calvino (1923-1985). É a forma escrita de uma conferência lida pelo autor no Institute for the Humanities da Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Foi publicado no mesmo ano no "The New York Review of Books" e, em 1985, na revista "Letteratura Internazionale". A versão de que disponho é aquela que se encontra às páginas 114-125 do livro Mondo scritto e mondo non scrito (Milão: Oscar Mondadori, 2002)."

    deixo o registro para entrar para a história...
    DdAB

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