LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

PARA UMA MENINA COM UMA FLOR, ONTEM E HOJE

...ler pela primeira vez um grande livro na idade madura
é um prazer extraoridinário: diferente (mas não se pode dizer
maior ou menor) daquele que tivemos ao lê-lo na juventude.

Italo Calvino (Porque ler os clássicos)

Já fará dois ou três anos que a Jane, minha sogra, me deu a coleção Vinicius de Moares: obras escolhidas, em quatro volumes, publicação de 1983 da Livraria José Olympio Editora (Rio de Janeiro). Tão logo os recebi, usei parte de um dos livros, Livro de Sonetos, num trabalho que desenvolvia sobre essa forma poemática com uma turma de segundo ano do Ensino Médio. Depois, deixei-os na estante, quietinhos a esperar por mim. Na última sexta-feira, como devesse acompanhar alguns alunos à Feira do Livro de Porto Alegre, meti, já de saída, um dos livrinhos na mochila, sabendo que nas quase duas horas de viagem (entre ida e volta no percurso Charqueadas–Porto Alegre) eu teria de ocupar-me com algo (e sempre gostei de ler em ônibus: fazia-o mesmo quando, na hora do pique, tinha de viajar em pé, nos tempos de estudante em Porto Alegre).

Começada a viagem, meti a mão na mochila e puxei o volume estreito, de capa dura e avermelhada. Abri-o e li o título: Para uma menina com uma flor. Trata-se, caso o leitor desconheça (e não há, penso, problema algum em desconhecê-lo: tantas coisas desconhecemos), de uma coletânea de crônicas e pequenos contos que o autor escreveu para periódicos como Última Hora, Diário Carioca, Manchete, Fatos e Fotos, etc. Está a obra dividida em dois períodos: (i) 1941-1953, e (ii) 1964-1966. Lidos o “Prefácio à 1ª edição” e o poema-dedicatória “A brusca poesia da mulher amada”, decidi pular à página 93 e iniciar a leitura pelo segundo período, justamente a partir da crônica “Para uma menina com uma flor”. Quando chegávamos de volta à escola, eu quase imediatamente concluía a leitura dessas crônicas dos anos 60. No fim de semana, li aquelas do primeiro período.

Mas por que estou mencionando isso tudo assim com tantos detalhes? Que dirão tais coisas ao paciente leitor que, até o momento, só não interrompeu a leitura porque é pessoa educada e persistente? Pois vejamos se posso interessá-lo.

Como do Vinicius eu apenas conhecesse o que quase todo mundo conhece, i. é, boa parte do cancioneiro e alguns poucos sonetos: “De repente do riso fez-se o pranto...” (Soneto de separação), ou “De tudo, ao meu amor serei atento...” (Soneto de fidelidade), ou ainda “Oh, partir pela noite enluarada...” (Soneto de Oxford) – abri aquele livrinho de crônicas escolhidas como quem fosse provar um prato, um doce, um sabor novo (sabor esse, é verdade, que de saída, e sem conhecê-lo ainda, já nos dispomos não obstante a apreciar favoravelmente).

Contudo, à medida que ia lendo aquela “prosa fiada” (como o mesmo Vinicius se refere a crônica em geral), me dava conta de que já a conhecia, e aí algo maravilhoso, algo sublime e instigante se deu: tive a certeza de que já havia lido aquilo tudo! Conhecerá decerto o leitor a sensação que nos invade quando um aroma esquecido nos remete a uma referência escondida in the back of the mind, ou quando uma música, ou filme, ou uma paisagem vem evocar em nós a lembrança de algo ou alguém que guardávamos dentro de nós mesmos sem saber que o fazíamos. Pois foi exatamente essa a sensação inefável que me tomou naquele momento, em que eu me reencontrava com um Conrado que pensava já não mais existir, ou, melhor dizendo, que, no estado atual de minhas percepções, nem sequer suspeitava que jamais houvesse existido. Que com o tempo vamos mudando, isso todos bem sabemos; porém, que aquela parte de nós que deixamos para trás cai às vezes no mais completo esquecimento, disso pouco cogitamos. Apenas quando esse “nós”, esse “eu” renasce, é que nos damos conta de que nos havíamos inteiramente esquecido dele.

Mas que Conrado era esse e quando exatamente ele existiu?

Quero crer que era um adolescente, aluno do Ensino Médio (ou Segundo Grau, como então se chamava). Já tocava seu violãozinho, e Vinicius de Moraes era uma de suas fortes referências, juntamente com Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim e tantos outros compositores (ou cantautores, como tão bem se diz em espanhol e italiano). É provável que tenha tomado emprestado o livro da biblioteca, se não foi um dos seus amigos, possivelmente o João, que lhe tenha alcançado a obra. Ah, que alegria reencontrar aquela leitura e, através dela, aquele leitor que um dia fui!

Vejamos se um exemplo pode ajudar a explicar-me melhor. Em “Conto rápido”, a personagem principal, uma sedutora mulher, “apertada num maiô azul”, desmaia na praia ao saber que o mar levara seu filho, e o texto se conclui assim: “afrouxada sobre a areia branca, seu corpo fazia uma graciosa mancha azul”. Esse desfecho, com essas palavras, me pegou de um jeito quando era adolescente, que não pude deixá-lo em paz (ou ele a mim) e, tão logo pude, copiei descaradamente a ideia do poetinha nestes versos que são parte de uma canção que escrevi para a Luciana, uma prima muito querida: “Uma menina, uma cicatriz / Deitada na areia do sonho que fiz”. Não há azul algum aí, é claro, nem a personagem da canção se apresentava como sedutora (era antes uma criança, uma menina). Porém, foram esses versos meus (bons ou maus, não entremos agora no mérito) buscados ali naquele texto do Vinicius de Moraes por um Conrado adolescente e, na época, aspirante a “cantautor”. Ora, e disso me lembrei ali, naquele momento, enquanto o ônibus nos balançava rumo a Porto Alegre.

Outras lembranças tive, associadas àquela leitura, mas sempre coisas assim esparsas, que me vinham de súbito aqui e ali. Ah, a emoção do reencontro, e quando justamente acreditava desconhecer o que me propunha a ler!

Mas, se houve reencontro, houve também descoberta. Era o mesmo livro do Vinicius de Moraes, mas era também um novo livro, pois este leitor, o de quarenta e tantos anos que hoje sou, não somente conhece bem melhor a expressão, mas também boa parte das referências ali feitas, aquilo que chamamos “conhecimento de mundo”, lhe é agora bem mais amplamente acessível.

Se, como escreveu Italo Calvino, “um clássico é um livro que não termina nunca de dizer o que tem a dizer-nos”, podemos (ou, pelo menos, eu posso) considerar Para uma menina com uma flor uma referência clássica. Saravá, Vinicius!

Este texto, porque trata de leitura e leitores, queria humildemente dedicá-lo à grande leitora que foi a vó Albertina. Ela acaba de nos deixar, mas eu vou guardar para sempre, e com muito carinho, a lembrança de nossas conversas sobre livros, autores e mais tantas outras histórias.

Um comentário:

  1. postabem maravilhosa! alegria e sofrimento (pela mãe do maiô azul e pela võ Albertina).
    DdAB

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