LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ALOPRINA-SAFO (1ª parte)

Quando estive na Inglaterra, conheci lá um senhor muito viajado e culto. Como sabemos, são normalmente os ingleses bastante reservados (há mesmo quem os queira até algo fleumáticos), mas, tão logo se façam as devidas apresentações, mostram-se assaz simpáticos e mesmo muito comunicativos. Pois esse senhor de quem vos falo, reconhecendo em mim o indefectível sotaque estrangeiro, quis de imediato saber de onde eu vinha. Informado de minha procedência, revelou-se ainda mais receptivo, pois, disse-me logo, e não sem algum orgulho (quero crer): “Tenho em mim, por parte dos avós maternos, o bom e puro sangue português!” Ora, sendo eu brasileiro, e do tipo “pelo duro”, em quem, caso tivesse o sangue dos distintos povos cor diferente, um corte possivelmente revelasse um líquido policromático, confesso que pouco ou mesmo nenhum sentido pude auferir do qualificativo “puro”, deixe-se de lado “português”; e quanto a “bom”, eis aí talvez um dos vocábulos que, ao lado de “interessante”, tragam em si tanta amplidão de significado que, no final, acabam mesmo por nada significar. Em todo caso, minha imediata observação, visto a pausa de meu interlocutor sugerir-me que algo devesse observar, foi bem esta: “How interesting!”

Encontrávamo-nos no backyard de uma casa Quaker (numa meeting house, como lá se lhes chama) e saboreávamos uma boa taça de Earl Grey, temperado, à moda inglesa, com uma indubitável dosezinha de leite. Tomando ele conhecimento de que eu me ocupasse de ensino, depois de me haver relatado algumas de suas viagens para “além da Taprobana”, entrou aquele Vasco da Gama bretão a falar-me da ilha Aloprina-Safo, que, caso o leitor não saiba (eu não sabia), se situa no Oceano Índico, a cerca de 230 milhas náuticas (uns 423km) ao sul das Ilhas Cocos, a oeste da costa ocidental australiana.

Por curioso e, vamos lá, “interessante”, faço a seguir um breve apanhado do relato que ouvi daquele senhor inglês sobre essa distante ilha e, mais especificamente, de seu singular sistema educacional.

A primeira curiosidade daquele lugar que de imediato me despertou a atenção foi, lá, um professor graduado impreterivelmente perceber rendimentos na ordem de 20 a 30 por cento inferiores àqueles auferidos pelos demais profissionais graduados. Não bastasse tamanho dislate, fiquei ainda sabendo que naquelas terras, onde se valoriza em excesso um esporte chamado “tutaopé”, um desportista profissional pode embolsar num único mês o que um mestre-escola talvez não chegue a receber em 20 ou mesmo 30 longos anos de estafante labuta! E isso que tal atleta não necessita saber senão assinar o próprio nome num contrato (e muitos destes, diz-se, saberão pouco mais que isso), ao passo que, por lei, não se pode mais ingressar na carreira docente sem uma graduação superior, uma “licença”, como lá se chama, a qual, somada aos 12 anos do ensino básico, perfará um total de, no mínimo, 16 anos de preparação ao trabalho.

Tão baixa remuneração não deixou de criar problemas ao governo, que se vê pressionado pela sociedade civil, a queixar-se ou da falta de docentes, ou da pouca qualidade daqueles que se propõem a sê-lo. Pudera, numa sociedade em que o dinheiro representa a mola, o impulso para as ações civis, será um Ghandi, um Cristo ou uma Madre Teresa de Calcutá aquele que, tendo as necessárias e exatas qualificações, se disponha a ingressar em carreira assim tão altruísta; a não ser, claro, que não lhe sobre muito mais a fazer...

Tomou o governo federal, então, a iniciativa de estabelecer um “piso” salarial a fim de que, com o tempo, a carreira docente se mostrasse menos antipática. Algumas províncias, porém, depois de um primeiro entendimento da noção de “piso” como se fora quase um “teto” (num equívoco arquitetônico primário, mas não, parece, sem segundas intenções...), recorreram ao Supremo Tribunal Federal, alegando falta de fundos para cumprir a lei. Vendo esse pedido indeferido, seus dignitários entenderam, então, propor aos sindicados docentes que o tal piso fosse sendo alcançado aos poucos, coisa de alguns dois ou três anos, disseram (mas isso sem, no entanto, estabelecerem sequer um calendário em que os professores pudessem objetivamente enxergar seu minguado progresso financeiro). Nada feito, porém! Os sindicatos apresentaram um ultimato: ou se pagava o piso imediatamente, ou a categoria entrava em greve por tempo indeterminado!

Ora, um dos artigos da democrática e cidadã constituição de Aloprina-Safo assegura o “direito de greve”. Contudo, em serviços diretos à população (e poucos não o serão), é a greve, como se sabe, uma poderosa carta potencial; mas basta que dela efetivamente se lance mão para que tudo se vá com a breca! A hipocrisia social é tamanha, que, embora consabida seja a penúria do magistério, será sempre uma minoria a estar de fato disposta a pagar o preço da luta, que se quer, no entanto, sempre justa. A imprensa, demagógica por definição (ainda que jure e conjure ser “objetiva”), invariavelmente apresenta uma única e sempre mesma linha editorial: justa embora, não é a greve a melhor saída “no momento”, “é inoportuna”, “e como ficam os cidadãos?”, etc., etc. 

Depois, há de se considerar também que, em todo movimento grevista, existem sempre três distintas facções: (1) aqueles que efetivamente entram em greve, o que não significa deixar apenas de dar aulas, mas antes envolver-se numa série de atividades cujo fim último será criar um movimento bem-sucedido; (2) aqueles que não param suas atividades funcionais (seja porque discordam da paralisação: o que os coloca numa posição antidemocrática, visto não ter podido haver a decisão de entrar em greve senão por maioria, nos fóruns adequados; seja porque temem, e isto é sintomático no caso dos docentes, perder suas férias, tendo em vista que deverão, na volta, recuperar o calendário acadêmico, em conformidade com a lei); e (3) aqueles que simplesmente decidem, de modo egoísta, tirar “umas férias” extemporâneas, pensando, cinicamente, que haverá sempre sobra de braços a operar o movimento, e isso quando não argumentam, igualmente de modo antidemocrático, que, porque não concordam com a greve, não veem por que devam trabalhar a seu favor, e acabam assim sem fazer nada (de “férias” mesmo), sendo, depois, os primeiros a choramingar quando se lhes quer obrigar a cumprir o calendário: “E nossas férias!?”, gritam aos quatro ventos.

Serão esses os motivos por que as greves dos professores da democrática ilha de Aloprina-Safo se terminam sempre no maior e mais estrondoso fracasso.

Ao que tudo indica, em Aloprina-Safo os professores, além de pouco dinheiro, têm igualmente bem poucos poderes. Com efeito, um parecer que esses profissionais venham a chancelar não será referendado por esse ato apenas (como o é, por exemplo, um atestado médico ou, a bem dizer, uma disposição de qualquer outro profissional qualificado); tem antes de passar por uma série de mãos, numa escalada hierárquica que, mutatis mutandis, se assemelhará aos círculos do inferno dantesco. Mas isso, supostamente, se tal parecer vier de encontro ao raciocínio numérico que o governo tenciona apresentar à apreciação da comunidade nacional e internacional. Sendo, portanto, o avanço dos discentes de série para série, ou ano para ano, quase um imperativo categórico, será muito mal vista toda apreciação negativa, que, “unilateralmente” (é o que se diz), queira que um dado aluno deixe de progredir no sistema educacional. Tanto isso é assim, que em algumas comunidades educacionais deverá o docente que queira reprovar um dado aluno munir-se de um verdadeiro dossiê, o qual poderá evidentemente acabar sendo indeferido, juntamente com o parecer negativo que lhe deu origem. Como essas decisões devam ser tomadas em véspera de férias, justamente num momento em que os profissionais estão às portas do anual descanso, serão raros aqueles obstinados que se empenhem a provar ao mundo que uma espada é tão somente uma espada. Assim, o pensamento pragmático do corpo docente é: nossos alunos tiveram a chance de frequentar nossas aulas – ora, se nenhum ou muito pouco proveito puderam colher delas, que assim sigam seu caminho: a vida lhes há de ensinar o que precisam quando (e se) vierem a precisar. E a verdade é que, de fato, dos conteúdos vistos na escola, bem poucos se têm revelado de alguma utilidade efetiva.

Há aqui um paradoxo, creio eu, pois, segundo pude entender, valoriza-se um currículo utilitário, que, em outras e mais simples palavras, sirva para alguma coisa na vida do futuro egresso; todavia, esse pobre indivíduo se vê na obrigação de arrebanhar um sem-número de conhecimentos, e todos mais ou menos pela metade, os quais deverá em seguida, e se conseguir livrar-se deles, jogar ao lixo. Mas há, diz-se, uma boa razão para que assim se faça, e esta é um rito de passagem a que, muito apropriadamente, se convencionou chamar “vestibular”. Ora, não havendo vagas para todos na universidade (a constituição de Aloprina-Safo só entende como “obrigatório” o ensino básico), se vê o estudante forçado a disputar um lugar ao sol do saber universitário num concurso muito disputado (o Vestibular). E sairá vitorioso nessa contenda aquele ou aquela que tiver uma memória de elefante, que lhe possibilite lembrar-se de fórmulas, datas, nomes e não sei mais o quê. Mas tão logo entre na universidade, é abrir o latão do lixo e flosh! jogar aquilo tudo às moscas! Será, claro, sempre preciso reservar algo para si, mas aí dá pena de entender que o que se deve reservar foi tão pouco explorado: havia que dividir espaço com o resto.

Céus! Vejo que avanço já para a terceira página, justamente quando meus leitores me pedem que não escreva muito!

Façamos assim: como ainda há o que relatar sobre o que me contou aquele senhor inglês sobre a interessante ilha de Aloprina-Safo e seu mui peculiar sistema educacional, fico hoje por aqui para, na semana que vem, voltar a contar-vos mais. Deal?

Abraço!

5 comentários:

  1. Caro Mestre das palavras Conrado,

    fico aqui em minha mesa, pensando que gostaria de conhecer esta "ilha" que desenhastes acima.

    Ainda bem que não precisamos ir tão longe, para vermos estas contradições do sistema.

    Aguardo novos comentários sobre ALOPRINA-SAFO.

    abrs

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  2. Deveras curiosa essa pequena ilha. Certamente muito distante daquela relatada por um certo Sr. More, mas não menos interessante.

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  3. Precisamos saber mais sobre a ilha e sobre o seu "problema" educacional. Aliás, garanto que a greve dos pobres professores vai mesmo acabar em redundante fracasso...

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  4. Ainda bem que no Brasil não é assim. Ufa!

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  5. Maria Valeska Vasconcelos5 de dezembro de 2011 às 13:42

    Professor Conrado!!! Estou curiosa para saber o final deste relato. Impressionante a narrativa!!! Nunca tinha lido/escutado/visto nada parecido...

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