LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

ESCOLA – UM ESPAÇO INTEGRAL DE APRENDIZAGEM?

Este texto foi escrito ao som de “Faraway eyes”, canção do álbum SOME GIRLS (1978), dos Rolling Stones. Dedico-o ao Prof. Antônio por corajosa e generosamente aceitar ser candidato a Diretor do Campus Charqueadas do IFSul.

Uma escola é (ou deveria ser) um espaço integral de aprendizagem, certo? Todavia, o que vemos no mais das vezes é antes uma “cidade fantasma”. Onde estão os alunos quando não é o período de intervalo, o famoso “recreio”? Você olha de fora dos muros lá para dentro e não vê quase ninguém. Você entra na escola, então, e anda pelo pátio e corredores, mas serão poucos os alunos, os professores e demais trabalhadores da educação por ali. Pais, mães, avós, esses muito raramente lá estarão (nem em reuniões destinadas exclusivamente à integração de pais e professores vemos número expressivo de pais na escola). Tampouco na biblioteca (quando esta existe!) você encontrará alguém na maior parte do tempo. E quando aí houver alguém, será o silêncio a imperar. Afinal, na biblioteca, nos dizem sempre, não pode haver barulho! Portanto, sssssssh! Com exceção talvez dos professores e alunos em aula de Educação Física, tão somente um ou outro aluno andará pelo corredor a caminho do banheiro ou atendendo uma incumbência qualquer que lhe tenha dado o professor, mas sempre, claro, sob cerrada supervisão.

- Que fazes aqui, garoto, que não estás em aula?
- Tô indo no banheiro, 'sora!
- Mostra o cartão de autorização!
- Xi! Misqueci!
- Volta pra aula, JÁ!

E o rapaz é reconduzido à sala de aula. Mas o que, afinal, é uma sala de aula?

De todos os espaços da escola (possivelmente com a única exceção do péssimo estado da “quadra de esportes”, quando, de novo, esta existe), é a sala de aula decerto o pior! E, sendo o pior, é não obstante aquele em que se acredita normalmente dever par excellence dar-se o propalado processo de ensino e aprendizagem!

Quando eu era menino, lá nos anos 70, formávamos fila à moda militar, estendendo o braço à frente e para o lado (só não prestávamos continência...), e a seguir íamos assim em fila rumo à sala de aula. Lá ficávamos até soar a sineta da hora do recreio. Ao término deste, voltávamos a formar fila, agora à frente da porta da sala de aula, e desta só saíamos quando de novo a sineta tocava. Era então hora de ir pra casa, ufa!

Mas então o mundo era assim, e não havia outro. Pelo menos, eu naquela época não era capaz de conceber que houvesse outro possível. Quarenta anos se passaram, e eu ainda me encontro na escola, agora por opção. E a escola segue “priorizando” a sala de aula! E, estranhamente, segue esse espaço sendo sempre o pior (donde, leitor arguto, as aspas no ambíguo verbo “priorizar”).

Detenhamo-nos, porém, um momento a considerar as características de nossas salas de aula. São impessoais: não pertencem a ninguém. Talvez uma dada sala “pertença” à turma que ali se encontra naquele turno ou, sendo a escola de dois ou três turnos, às turmas que dividem aquele mesmo espaço ao longo do dia letivo. Será essa sala, ainda assim, sempre impessoal, pois, a não ser por um ou outro trabalho ou cartaz que se lhe afixe às paredes, nenhum dos alunos deixará ali ou, muito menos, terá ali, senão na hora da aula, os seus pertences (o que faz com que deva carregar pesada mochila todos os dias). São frias, senão gélidas, no inverno e horrivelmente quentes no verão, com, quando muito, um ou dois barulhentos ventiladores, se estes funcionarem. As classes e as cadeiras, sobretudo estas, são normalmente muito desconfortáveis. Aliás, não será acaso isso que, a seu modo, queiram nos dizer aqueles alunos que, a despeito do que lhes digamos sobre conservação de “patrimônio” (público ou outro), insistem em riscá-las, nelas colar chicletes mascados, ou eventualmente até quebrá-las? E o que dizer de jovens que, já naturalmente pouco inclinados a estar sentados, devem ainda fazê-lo em móveis tão desconfortáveis!?

E já que falamos em móveis, vejamos sua disposição. Estive em muitas escolas, em inúmeras salas de aula de diferentes níveis de ensino, e posso dizer que a disposição “olho na nuca” é o infeliz padrão. Não digo que o modelo “auditório” não sirva. Longe disso! Mas serão todas as aulas assim? No Campus Charqueadas do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul), por exemplo, temos um espaço dito multidisciplinar em que contamos com cerca de cinco mesas redondas para cinco ou seis alunos em cada uma. É notável o interesse que demonstram os alunos em trabalhar ali. Tenho usado bastante essa sala e, quando por uma razão ou outra não o faço, meus alunos reclamam. É evidente sua preferência por aquela disposição. Infelizmente, fora, é claro, os laboratórios (que atendem uma funcionalidade específica), é esse espaço a exceção, sendo as salas de aula do tipo “olho na nuca”, de novo, a triste regra. (Posso ouvir alguém dizendo: “Mas cabe ao professor simplesmente alterar a disposição dos móveis, adaptando-os à finalidade que queira!” Claro, claro. E isso muitas vezes é o que de fato fazemos. Mas ainda assim é a ordenação espacial default um indício bastante eloquente do que se crê deva ocorrer num dado ambiente, ou não?)

A insistência que vemos em nossos alunos de querer sair da sala de aula a todo momento terá decerto muitas razões, mas uma destas dever-se-á com certeza às características negativas desse espaço apontadas acima. Não creio que numa escola deva ser a sala de aula o único espaço de aprendizagem, mas, se queremos efetivamente priorizá-la, devemos fazê-lo em todos os sentidos dessa palavra, tornando-a um lugar confortável, agradável, um local onde se queira estar e para onde se queira ir, não lhes parece?

Agora, pensemos no professor. Lá vem ele ou ela feito um homem-aranha trazendo, nas cinco ou seis mãos que terá de ter, e livros, e giz ou canetas-marcadores, e, muitas vezes, CD-player, e mapas, e dicionários, etc., etc. E assim arfando dirige-se a um lugar que não é nem nunca será seu! Ora, se os alunos, que ocupam aquele espaço um turno inteiro, não se sentem “em casa” na “sua” sala de aula, o que dizer do professor, que, como um periquito assoleado, passa o dia a pular de galho em galho? Na verdade, está o homem aí ainda pior do que o bicho, porque este não carrega senão de vez em quando alguns raminhos no bico, enquanto o professor, já dissemos, leva o mundo! Que dificuldade é esta que temos de organizar os espaços, de fazê-los conter em si os apetrechos que diariamente ali devem ser usados, espaços que não se destinam senão àquele fim específico e único, mas que desgraçadamente devem todos os dias ser aparelhados de novo e de novo como uma tela de Penélope que nunca acaba de estar pronta!?

E é esta sala de aula, senhoras e senhores, precisamente o local em que toda a obra educacional deve verificar-se!

E lhes pergunto ainda: não haveria na escola outros espaços em que também pudéssemos trabalhar, onde o aprendizado igualmente se verificasse? Já vi, na minha Escola e em outras, excelentes iniciativas, em que professores, por exemplo, levam seus alunos para o pátio, seja à sombra ou ao sol, e ali mesmo, à moda dos sábios educadores de outros tempos, fazem acontecer as suas aulas. Já vi também desenvolverem-se atividades na biblioteca, que por um momento deixa de ser um espaço do silêncio e ganha vida, seja porque alguém lê um texto ou narra uma história, seja porque se entende que circular por seus corredores e estantes, folheando livros e revistas ao acaso, valerá naquele dia específico bem mais que uma preleção sobre não sei que assunto. (Surpreendia-me sempre quando um aluno, já no final do ano letivo, vinha dizer-me que nunca havia posto os pés na biblioteca. Hoje sei mais: entendo que a culpa, se culpa há, será menos deste aluno de pouca iniciativa do que do próprio modus operandi de nossas escolas, com sua atenção quase exclusiva à sala de aula.) E podia seguir nomeando tais iniciativas, que felizmente sempre as há. Contudo, tudo que ocorre fora da sala de aula, se quiser valer "oficialmente" alguma coisa, demandará, no mais das vezes, procedimentos burocráticos que, não digo que não tenham lá sua razão de ser, mas que ao fim e ao cabo desestimulam a iniciativa, favorecendo, isso sim, uma atuação de “professor-relógio-ponto”. Ora, se queremos uma escola de espaço integral, que aguardem os papeis e os formulários! Façamos antes, que haverá sempre tempo, depois, de registrarem-se essas atividades!

Agrada-me pensar que minha concepção de educação talvez se ajuste àquela que o Prof. Samir tão a propósito refere em seu comentário ao texto da última semana, a saber, a de uma “educação progressista”, que se posiciona como “geradora de inquietação”, como “oposição e resistência a uma ordem relativamente consolidada”. Portanto, se de fato a escola (tanto nosso Campus como qualquer outra escola) quer, já não direi “mudar o mundo”, mas ao menos apresentar-se como uma aliada nessa mudança, deverá antes e sempre transformar-se a si mesma, e será, me parece, a transformação espacial um passo certo nessa direção, quem sabe o primeiro e mais efetivo passo.

E essa transformação, essa mudança, creio eu, não deve dar-se unicamente na disposição espacial da sala de aula (que, como vimos, requer que seja feita e já!), senão igualmente no rearranjamento, na reacomodação de toda a escola, porque, ainda que reordenemos o espaço interno da sala de aula, é sempre possível que nossos alunos continuem a olhar pela porta aberta e pelas janelas com olhos distantes (faraway eyes).

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A MÁ ESCOLARIDADE SERÁ DE FATO PIOR DO QUE A BAIXA ESCOLARIDADE?

Li com muito interesse, no jornal Zero Hora da sexta-feira passada (dia 12 de agosto de 2011), o texto “Baixa escolaridade e má escolaridade”, do “filósofo” e jornalista Eduardo Nunes (o leitor pode também encontrar o artigo nos endereços indicados no final deste texto). De saída, pegou-me a afirmação em destaque: “É fácil saber por que diplomamos, ano após ano, tantos analfabetos funcionais”, mas creio que o teria lido ainda que não trouxesse um destaque tão atrativo, porque venho quase sempre lendo tudo quanto se escreve sobre educação em Zero Hora e no Correio do Povo, jornais que assinamos. Enfim, sempre é o caso que o li, e o fiz com muito interesse.

Mas por que o interesse? À primeira leitura, me senti tentado a concordar com o autor, que aliás, é bom que se diga sempre, escreve muitíssimo bem. Depois, lendo de novo e de novo e novamente e ainda mais uma vez e outra, notei que aquilo me incomodava sempre. Por quê? Ora, leiamos juntos o parágrafo introdutório:

“A baixa escolaridade dos aspirantes ao mercado de trabalho é apontada como um entrave ao desenvolvimento do país, mas a falta desses anos a mais de estudo está longe de ser o principal problema a retardar nosso crescimento. Muito pior que a baixa escolaridade é a má escolaridade.”

Se não sou mais um desses “analfabetos funcionais” de que nos fala Nunes (e espero sinceramente não sê-lo!), devo entender que seria melhor a “baixa escolaridade” do que a “má escolaridade”, certo? (E aqui sempre nos virá à mente aquela famosa asserção atribuída a Albert Einstein de que pouco conhecimento seria uma coisa perigosa.)

Entenda-se: o conceito de má escolaridade que nos apresenta Nunes não é aquele que pregaria a violência, a discriminação étnica, o fundamentalismo religioso e tantos outros entulhos de tempos idos que desgraçadamente ainda hoje vemos existir. Nada disso! O autor entende por má escolaridade “o gritante despreparo com que as crianças saem dos anos iniciais”. São esses alunos, nos diz ele, “incapazes de entender” o que está escrito nos livros didáticos enviados às escolas pelo MEC. Em Matemática, não conseguem acompanhar os conteúdos próprios da etapa em que se encontram, o que obriga os professores dessa disciplina a voltarem a ensinar-lhes as quatro operações básicas, quando já deveriam andar três anos adiante no conteúdo. Nunes vê nesse atraso a razão da “tragédia dos exames da OAB, em que a imensa maioria dos postulantes, todos bacharéis, é reprovada”. Menciona o saudoso jornalista Fausto Wolff, que, segundo ele, “costumava dizer que devia quase tudo que sabia a suas professoras do primário, com quem aprendeu a ler, escrever e pensar”. Para o autor, é nos primeiros anos de escola que se estabelecem os “alicerces” que “garantem aprendizado efetivo e maduro pelo resto da vida”. E conclui: “Se mal trabalhados [esses alicerces], fazem com que todo o aprendizado posterior seja carente e incompleto.” Portanto, para Nunes, a má escolaridade seria o, digamos, mau serviço em termos de ensino de conteúdos, sobretudo no Ensino Fundamental, quando os alunos “certamente deixaram de aprender muitas coisas que deviam ter aprendido”.

Todavia, ainda que se aprenda pouco em termos de conteúdo no Ensino Fundamental, não são poucos os estudos a indicar-nos que o aumento nos anos de escolaridade está diretamente associado à melhoria dos padrões de saúde pública (com redução da taxa de infecção pelo vírus HIV, aumento da taxa de vacinação, ganhos acentuados na prevenção e no tratamento de doenças, melhoria nas condições de higiene e em matéria de nutrição, etc.), de demografia (com redução das taxas de mortalidade infantil e de morbidade maternal, aumento da expectativa ou esperança de vida, controle da natalidade, com redução da gravidez indesejada, etc.) e de economia (com o aumento da produtividade das sociedades aumenta-se por conseguinte o poder aquisitivo, etc.), para não mencionarmos aqui senão três áreas importantes.

Igualmente, do ponto de vista político-social, não será decerto irrelevante o fato de que, ao aumento do tempo de escolarização, possamos associar, nas sociedades modernas, a capacidade de uma melhor compreensão dos mecanismos de resolução não violenta de conflitos, a autoconfiança do cidadão, um melhor entendimento das diferenças entre grupos sociais distintos, entre outros benefícios, e tudo isso, é claro, sendo a resultante de mais acesso à informação, que em muitas comunidades (inclusive brasileiras) só se verificará na escola. Não será por outra razão, aliás, que na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989) figura a educação como um dos direitos inalienáveis da criança (que, naquele documento, conforme Art. 1º, é “todo ser humano menor de 18 anos”).

Não quero discordar de Nunes quanto à baixa qualidade em termos de conteúdos da educação brasileira contemporânea. Venho lecionando há já tempo suficiente para conhecer nossas escolas (públicas e privadas). Mas esse trololó de que no passado as coisas eram melhores não me convence. E não precisarei buscar pelo Google estatísticas e outros dados para afirmar que, a não ser pelos beneficiados de então, ninguém seriamente trocaria a situação educacional brasileira de hoje por aquela que tínhamos há 40 anos. É claro que os alunos do Ensino Médio do Colégio Pedro II, naquele famoso curso de bacharelado que lá havia, acompanhavam sem grandes problemas os exemplos de Ciro dos Anjos, Eça de Queirós, Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, etc. que Othon Garcia lhes apresentava em aula a fim de ilustrar os “tipos de discurso”, coisa que alunos meus, formandos do curso de Direito de distinta universidade gaúcha, não puderam fazer, forçando-me a usar material “mais acessível” em lugar dos excelentes capítulos III e IV do Comunicação em prosa moderna. Mas, que diabos, homem! Dos 511 anos de história do nosso país, 322 (63%) vivemos sob a condição de colônia, e faz somente 40 (de 1971 para cá) que nosso Ensino Fundamental é obrigatório, período que não ultrapassará (se tampouco sou analfabeto funcional em matemática, bem entendido!) 8% do total de nossa existência aqui neste Novo Mundo! Portanto, garantir a escola para todos, ainda que a escolaridade não seja (ainda) boa, a meu ver será sempre melhor do que não ver essa gente toda frequentando a escola, sobretudo se a má escolaridade não tem, como me parece que não tenha, a orientação do entulho referido acima, tratando-se ao contrário de algo que boas políticas públicas na área podem, num futuro não muito distante (espera-se), vir a tornar “bom”.

Agora, que nós professores sejamos no geral mal preparados, isso ninguém ignora. Mas o Nunes, que, parece, já não leciona mais, mete o dedão na ferida e nos coloca em duas categorias: os incompetentes e os mal-intencionados. Os primeiros porque não sabem ensinar, ponto, e os segundos porque, como diz, “ensinam mal por opção”. Estes não deixam igualmente de ser incompetentes, visto, segundo Nunes, implementarem mal as teorias pedagógicas nas escolas, ao passo que aqueles poderiam até ser considerados um tanto mal-intencionados também, uma vez que adotam a carreira do magistério porque “não conseguem colocação melhor”. É triste! No entanto, nestes meus vários anos de magistério, quanta gente eu vi que não era uma coisa nem outra. Gente equilibrada e extremamente bem-intencionada, que busca incansavelmente qualificar a si e a seus alunos, que compreende que na vida o vestibular não é tudo – mais: que é o vestibular uma aberração de um sistema educacional elitista, que só premia aqueles que largam quadras e quadras na frente. Ora, e se não for pelo vestibular, muito conteúdo considerado “importante” perde ligeirito seu status quo, ou o leitor aí que não atua na área de Física ou Química ainda se lembrará em detalhes das leis de Newton ou da numeração dos gases nobres? E menciono essas duas disciplinas aqui ao léu, que em todas haverá coisas de que nos esquecemos tão logo delas deixamos de ter necessidade, e o fazemos muito bem, penso eu!

Por fim, não penso em defender aqui as políticas públicas que hoje temos para a educação, as quais nosso inconformado Nunes não deixa, é claro, de também criticar, ainda que o faça meio en passant (não fala diretamente, por exemplo, como me parece que devia no espaço que ocupou, que estamos longe de investir os 10% do nosso PIB na educação brasileira, como aliás quer o Texto Constitucional). Apenas direi que essas políticas nem sempre estão equivocadas. Um dado interessante: dos 61 países que vêm medindo sua “qualidade de ensino” através das orientações do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês), o Brasil ocupa a 49ª posição em Leitura e Ciências, e a 53ª em Matemática, enquanto o Japão se encontra na 7ª posição em Leitura e Matemática, e na 5ª em Ciências (dados de 2009). Contudo, no Japão não há reprovação ao passo que o Brasil, apesar de dizermos que aqui os alunos avançam a torto e a direito, é o terceiro colocado em termos de reprovação. Detalhe: já se constatou (e os dados no site da OCDE, organização que coordena o PISA, são bastante eloquentes) que os países que mais reprovam são justamente aqueles que se encontram mais abaixo na classificação.

Haverá decerto outras variáveis aí, não lhe parece, amigo leitor? Em todo caso, questões educacionais são sempre bastante complexas, e o texto do Nunes, ainda que bem escrito e aparentemente óbvio, revela-nos no entanto que o autor, assim como aqueles professores e alunos que ele critica, precisa sempre estudar mais.

Aqui estão os endereços onde o leitor pode encontrar o artigo do Eduardo Nunes:

http://www.todospelaeducacao.org.br/comunicacao-e-midia/educacao-na-midia/18090/opiniao-baixa-escolaridade-e-ma-escolaridade-por-eduardo-nunes/

http://eduardonunes.org/escola/baixa-escolaridade-x-ma-escolaridade/

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ensinar de verdade? Quem sabe então: "educar de verdade"?

Amigos leitores:

Este bogue não tem como tema exclusivo a linguagem, embora, dada a formação de seu autor, será possivelmente esse um dos assuntos mais recorrentes.

O leitor Roberto Silva Kun publicou aqui um comentário muito instigante referente ao texto da semana passada,“Língua difícil? – uma reflexão sobre a língua portuguesa e o uso que dela temos feito”, e muito provavelmente tendo também em mente o texto da semana anterior, “Por uma vida melhor”, no qual defendo o livro Por uma vida melhor, distribuído pelo PNLD, que vem injustificadamente, a meu ver, sendo atacado.

De pronto, como é meu costume, redigi uma resposta a suas observações. Contudo, como tal resposta se mostrasse demasiado extensa, decidi publicá-la como o texto desta semana. Deixei lá, como resposta imediata ao Roberto, apenas breve nota informando-o de que procederia assim.

Eis a seguir, portanto, minha resposta ao Roberto. Não republico aqui seu texto, deixando ao leitor interessado o cuidado (possivelmente recomendável) de lê-lo lá onde se encontra, i. é, entre os comentários ao texto da semana passada.


Roberto:

Primeiramente, quero te agradecer a leitura e, claro, o comentário. É evidente que quem escreve quer ser lido, mas, no caso de um blogue, para além da simples leitura, existe essa fantástica possibilidade de comentar o que se lê, de interagir com o autor, que pode (como tenho procurado fazer) responder a seus leitores (que, neste momento, assumem já a condição de autores). Meu blogue não tem ainda dois meses de vida, e eu já estou fascinado por essa oportunidade de não apenas divulgar por escrito o que leio e penso, como também dialogar com meus leitores.

Penso poder entender tua preocupação com os destinos do nosso idioma. Não penses tu que também eu não me preocupe com isso. O simples fato de em duas postagens seguidas eu me haver ocupado dessa temática é, no meu entender, já revelador dessa preocupação.

Teu texto me interessou muito. Procurei, depois de várias leituras, dividi-lo em tópicos e ir buscando responder a cada um deles. Isso talvez alongue esta minha resposta. Que fazer? Assim parecem funcionar as coisas. Peço, portanto, paciência a ti e aos demais leitores, que todos, espero, só faremos desenvolver, como dizes, “um maior e melhor conhecimento” senão de nosso idioma, ao menos de algumas questões a ele pertinentes.

1. “...fico com a impressão de que você não tem interesse em contribuir com a manutenção do idioma”

Tudo depende, Roberto, do que tu entendas por “manutenção”. Tenho todo o interesse de que as pessoas, sobretudo aquelas que estudam português sob minha orientação, não apenas conheçam “mais e melhor” essa língua, mas também aprendam a amá-la tanto quando eu. Ora, amigo, se tu amas algo ou alguém, terás decerto todo o interesse em não deixar de estender-lhe teu suporte, palavra que penso não me equivocar em ver como parte integrante do conceito de “manter”. Fico pensando cá comigo que trecho ou trechos de meu texto ou textos te levou a essa impressão. Quando escrevemos ou falamos iludimo-nos de que aquilo que lá na cabeça tínhamos na origem se revelará tal e qual ao nosso leitor ou ouvinte. Todavia, as coisas não são bem assim, infelizmente. Devo numa passagem ou outra ter me equivocado. Seria demais te pedir que me indicasses tais trechos?

2. “...agora por todos os lados se vê um esforço contrário, tentando enfraquecer a noção de certo e errado, norma culta, regras, etc.”

De fato, Roberto, existe tal esforço. Mas isso pode não ser necessariamente algo ruim. “Certo”, “errado”, “norma culta” e mesmo “regras”, tudo isso são conceitos que estão sendo investigados. Já sabemos, por exemplo, que “certo” e “errado” são classificações relativas. Assim, diremos que tal construção está “certa” ou “errada” consoante o contexto em que se veja inserida. Tu não dirás, por exemplo, que “Tu foi no cinema ontem?” é uma frase “errada” quando dita por um porto-alegrense a outro numa situação informal ou semi-informal, ainda que possivelmente essa sentença deva, em situação idêntica, muito bem ser assim classificada se um lisboeta a tiver usado. (Não sou um especialista em português europeu, mas suponho que nessa variante os verbos ainda mantenham, mesmo em situações informais, a antiga conjugação de segunda pessoa do singular. Talvez me engane.)

A denominação “norma culta”, por sua vez, me soa algo equivocada; pelo menos, um tanto infeliz, já que nos leva a supor que as demais normas sejam desprovidas de cultura, suposição essa demasiado temerária, me parece, pois lança mão, para sustentar-se, de um conceito bastante estreito de cultura.

Quanto a “regras”, é sempre bom ter algum cuidado, porque na gramática “prescritiva” tradicional contam-se a mãos-cheias regras cuja motivação ou é um simples capricho do compilador, ou se baseia num corpus eminentemente literário, bem distante, portanto, do que se verifica tanto na fala quanto na escrita hodierna. Não que não se devam escrever gramáticas que nos auxiliem a ler autores do passado. Nada disso! O que não se pode querer é que gramáticas baseadas apenas em autores clássicos de nossa literatura venham a apresentar-se como “o” modelo para o uso atual. Não é preciso ser um Darwin para entender que as línguas, sendo organismos vivos, se alteram com o passar do tempo. Não fosse isso, ainda diríamos “magistra discipulum amat”, ou algo parecido, em lugar de “a professora gosta do aluno”.

3. “O enriquecimento de nosso idioma está ameaçado, corremos o risco de retroceder.”

Não posso concordar com isso, Roberto! Em língua, não creio que haja passo para trás, ou pelo menos não enquanto houver falantes/usuários dela. Se não investirmos em boa educação, em leitura, se não alcançarmos poder, responsabilidade e condições dignas às camadas mais desfavorecidas de nossa população, decerto andaremos para trás. Contudo, ainda que isso venha a acontecer, nossa língua seguirá seu caminho incólume. Incólume, digo, mas não inalterada.

Há quem morra de medo de que o português empobreça morfologicamente. Não creio conhecer língua que tenha sido mais alterada morfologicamente do que o inglês depois da “invasão” normanda. Ninguém dirá hoje, contudo, que, pobre morfologicamente embora, não seja o inglês uma das línguas mais eficientes e bem-sucedidas no Ocidente. “Ah, mas isso se deve ao Império Britânico, ao imperialismo americano, etc...”, dirá alguém. Pois justamente! Da língua em si dificilmente diremos sem preconceito ser ela “pobre” ou “rica”, ou “feia” ou “bonita, ou então “isso” ou “aquilo”: a língua será sempre aquilo que o povo que a usa será. Portanto, demos corda, por assim dizer, ao brasileiro e deixemos nosso português seguir seu próprio caminho!

4. “É uma pena, porém, que aqueles que deveriam lutar para proteger os avanços históricos e ampliá-los tornem-se cúmplices do empobrecimento da língua.”

Se me incluis entre “aqueles que deveriam lutar” etc., como me parece que fazes, não deixo de ficar lisonjeado. Recebo de ti como que o reconhecimento de encontrar-me numa posição de algum poder. Possivelmente, enquanto professor de língua portuguesa, de fato eu goze de algum “poderzinho” nesse sentido. Contudo, não vejo minha atuação como aquela de um agente, ainda que secundário (“cúmplice”), do “empobrecimento da língua”. Não vejo, e aí, me parece, discordamos efetivamente, não vejo, digo, a nossa língua num processo de empobrecimento. Há sem dúvida transformações, mas essas não significam necessariamente empobrecimento.

Poderá alguém pensar que, por usarmos hoje uma conjugação com menos concordâncias do que faziam nossos antepassados (e será que todos as faziam?), estaríamos de alguma forma “empobrecendo” nossa língua. Assim, em lugar de “eu canto, tu cantas, ele canta, nós cantamos, vós cantais e eles cantam”, temos hoje “eu canto, tu canta, ele canta, a gente canta, vocês cantam, eles cantam”, ou seja, em lugar de seis formas distintas para o verbo, temos hoje frequentemente apenas três. Há quem decerto pense que isso seja empobrecimento. De fato, morfologicamente essa alteração pode ser assim chamada. Mas isso não significa “empobrecimento” no sentido de algo contra que devamos lutar, pois a riqueza em termos semânticos e também sintáticos dessas formas pode muito bem manter-se inalterada. O inglês conta com apenas duas formas para o verbo no presente do indicativo e o francês três. E falo aqui do inglês e do francês “cultos”. Ora, diremos que essas são línguas pobres!? Dificilmente.

Também quanto à concordância nominal, se compararmos nossa língua com o francês e o inglês “cultos”, veremos que nestas ou de regra apenas o primeiro elemento do sintagma nominal se altera, ou apenas o substantivo se altera. No primeiro caso, encontra-se o francês, em que o plural de, por exemplo, “le garçon brésilien” será “les garçons brésiliens”. Aqui, embora se verifique um “s” de plural em “garçon” e “brésilien”, tais palavras são de fato pronunciadas como se não o tivessem, ou seja, são pronunciadas exatamente como o são no singular. Apenas o artigo “les” indicará o plural de todo o sintagma e ainda assim não em razão do “s”, que, neste caso, não é pronunciado, e sim pela qualidade da vogal, i. é, o “e” de “le” é fonologicamente distinto do “e” de “les” (o que, diga-se incidentalmente, nos mostra a diferença entre fala e escrita também no francês). Aliás, é esse fenômeno exatamente aquele que observam os autores do livro Por uma vida melhor estar se verificando no português. Observação, diga-se a verdade, que não vem deles, que são autores de livros didáticos, mas de pesquisas feitas em programas de pós-graduação de universidades muito bem conceituadas.

No segundo caso, temos exemplos bem conhecidos do inglês em sintagmas como “the Brazilian boy”, cujo plural será “the Brazilian boys”. Observe-se que o único elemento a pluralizar-se morfologicamente é “boy”. Assim, quando alguém se assusta com os rumos da língua portuguesa quando ouve dizerem coisas como “as cadeira amarela”, e o faz porque imagina haver um empobrecimento talvez de ordem “cognitiva” em questão, julgo que falta a essa pessoa deter-se um pouco mais a considerar os fenômenos linguísticos, e nesse sentido o estudo de outras línguas pode nos trazer muitos esclarecimentos sobre nossa própria língua.

Mas, voltando aos exemplos dados acima, diremos nós que o francês e o inglês são línguas pobres? Que sua morfologia tenha se empobrecido ao longo do tempo, isso não há como negar. Porém, tal empobrecimento não significou de modo algum depauperação, involução ou perecimento; antes pelo contrário!

Compreender essas mudanças em nossa e em outras línguas, ver em que medida se vêm realizando efetivamente no uso “real” (tanto escrito quanto falado) que de nosso português fazemos, discutir essas questões em sala de aula, instigar os alunos a que pesquisem sobre o idioma que usamos, nada disso me parecem atividades de um “cúmplice do empobrecimento da língua”. Talvez até não me opusesse a que dissessem que, ao contrário, ando a “proteger os avanços históricos” de nosso idioma.

5. “Creio que o uso da nossa língua seria qualificado por meio de um maior e melhor conhecimento do mesmo, a fim de que todos possam dominá-lo bem, ao invés de se estabelecer a média de conhecimento como normal.”

Não vejo minha atuação nem, muito menos, aquela dos autores do livro Por uma vida melhor como “estabelecendo a média de conhecimento como normal”. Ao menos assim me pareceu depois de ler o capítulo 1 daquela obra. E justamente o que se vem procurando fazer é promover “um maior e melhor conhecimento” de nossa língua, ampliando os horizontes de nosso entendimento sobre ela, que não deverá se restringir à memorização de regra em cima de regra, numa ânsia desmedida de garantir o acesso a uma “norma culta” que, segundo se tem investigado, nem os ditos “cultos” eles mesmos parecem dominar.

6. “É necessário levar as pessoas ao conhecimento, ao invés de aceitar que não consigam obtê-lo.”

Isso já está, me parece, respondido acima. Ainda penso, se posso acrescentar algo à resposta, que o melhor método é ir do conhecido ao desconhecido. Assim, procederemos no estudo do idioma respeitando o conhecimento dele que trazem para a sala de aula nossos alunos. Não caberá entrar com Vieira e seus latinismos num grupo em que o contato com a língua escrita seja ainda bastante incipiente. Isso não quer dizer, porém, que não se chegue um dia ao genial padre barroco, havendo sempre, é claro, tempo e sobretudo interesse.

7. “Em outras palavras, ensinar de verdade, e não simplesmente dizer às pessoas que podem ficar como estão, sem muito entendimento.”

“Ensinar de verdade”! Que coisa! Poderia responder a esse comentário de muitos modos, mas aqui apenas referirei uma sugestão que li já nem me lembro em que autor, a de que passemos a usar “educar” em lugar de “ensinar”, e isso porque “ensinar” (do latim in + signare) é pôr algo (um “signo”) para dentro supostamente da mente do aprendiz, enquanto “educar” (latim e(x) + ducere) é conduzir algo para fora, supostamente também da mente do aprendiz.

Teríamos aí, portanto, duas concepções distintas de educação: na primeira (a de “ensinar”) quer meter-se algo na cabeça dos outros; na segunda (a de “educar”) busca-se, à moda socrática, auxiliar o outro a que veja por si mesmo o que o cerca, busca-se, portanto, como que extrair o conhecimento que lá no fundo, em nós mesmos, podemos encontrar.

É claro que há coisas de que nada ou muito pouco sabemos, e essas nos devam ser apresentadas possivelmente a partir do zero, senão quase a partir deste ponto. Nem todo conhecimento se dará pelo método da maiêutica, como queria Platão. Todavia, no caso específico de nossa língua-mãe, os alunos já a conhecem muitíssimo bem, pois dela vêm se servindo desde seus primeiros balbucios. Não se pode jogar fora toda essa experiência linguística e partir do nada, nem jamais se deverá dizer a alguém que a língua que traz de casa deva ser abandonada. Que o leitor considere a contribuição linguística que se encontra na obra de um Simões Lopes Neto, de um Guimarães Rosa, para mencionar apenas dois de nossos grandes e consagrados autores, e me diga se não é a língua do povo de uma riqueza inestimável!

Quem sabe isso não seja de fato “ensinar de verdade”. Pouco importa! Talvez devamos antes começar a “educar de verdade”.

Grande abraço!

Conrado