LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

THE BOYS

A correria de final de ano, com fechamento de notas e conselhos de classe, etc., me deixa sem o tempo necessário para um novo texto. Recorro (e já tinha de todo modo pensado em fazê-lo em algum momento) ao pequeno poema "The Boys", que escrevi quando meus filhos eram ambos ainda pequenos. Está em inglês, foi assim concebido, mas não é um inglês complicado, de modo que mesmo aqueles de meus leitores que não sejam fortes nessa língua poderão ler e entender os votos de felicidade de um pai coruja para seus filhos amados.

Aproveito para agradecer as sugestões de nome para o poema da postagem anterior. Decidi ficar com a conscienciosa sugestão da Profa. Mara Jardim, e doravante meu pequeno poema meditativo se chamará "Sine Reditus".

Grande abraço!


In this house of ours live
two boys. May God always give
both of them light, health and joys.
Nothing bad shall reach the boys.

And if a monster (a nasty monster!)
tries to get through their bedroom window?

These two boys aren’t to be fun—
they’ll sure make this monster run!
May God keep them always strong,
away from everything that’s wrong.

In this house of ours sleep
two boys. May God always keep
both of their lives in good lead,
away from sadness and need.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

POEMA EM BUSCA DE NOME, da série "poemas de circunstância"

Enquanto aguardamos a continuação do relato sobre Aloprina-Safo (que, afinal, talvez nunca venha, visto tão pouco interesse haver despertado), entretenhamo-nos com mais um "poema de circunstância". Gostaria de lançar um desafio aqui: como nunca soube pôr um nome, um título neste texto, peço àqueles leitores que se sintam inspirados que o batizem. Enviem-me um nome, e aí veremos, certo?

Abraço!


Não tens como voltar
Que se saiba
Deixando de lado os embustes
Ninguém jamais voltou

Ora, o pensamento de que se volta
De que se pode algum dia voltar
Ainda que sob outra pele
E com outros ossos
Atraente embora
Nunca me convenceu
Só os tolos se comprazem a crer
Que valem mais que os pássaros e os cães
Do que as flores do campo
E as taquaras que o vento inclina

A vida é uma e apenas uma, e só
Teus dias são únicos e teus tão somente
Infinitos talvez psicologicamente
Mas materialmente breves como a aurora
Estão inarredavelmente contados
Eis o que me parece sensato crer

Mas há um modo de ficar
Se assim o desejares
Na vida dos que permanecem ainda

Pode parecer estultice
Pensar em deixar algo
Se já nunca mais o veremos em uso
De fato, assim é
Mas que importa?

Não haverá possivelmente ato de amor maior
Que o desinteresse em deixar-se ficar
Sem que isso nos afete minimamente sequer
E para sempre

Matar um presidente
Plantar uma roseira
Escrever uma tese
Ainda que insuficiente e cheia de goteiras
Ou alinhar palavras velhas na intenção de um poema novo
Em prosa ou verso
Tu decides, amigo

Porém o silêncio e o esquecimento talvez
Sejam o que de melhor se possa afinal fazer
E deixar nada no fim
É amar firme e forte
É agradecer o acaso
Que nos pôs nesta inexplicável e maravilhosa
Tristeza de existir

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ALOPRINA-SAFO (1ª parte)

Quando estive na Inglaterra, conheci lá um senhor muito viajado e culto. Como sabemos, são normalmente os ingleses bastante reservados (há mesmo quem os queira até algo fleumáticos), mas, tão logo se façam as devidas apresentações, mostram-se assaz simpáticos e mesmo muito comunicativos. Pois esse senhor de quem vos falo, reconhecendo em mim o indefectível sotaque estrangeiro, quis de imediato saber de onde eu vinha. Informado de minha procedência, revelou-se ainda mais receptivo, pois, disse-me logo, e não sem algum orgulho (quero crer): “Tenho em mim, por parte dos avós maternos, o bom e puro sangue português!” Ora, sendo eu brasileiro, e do tipo “pelo duro”, em quem, caso tivesse o sangue dos distintos povos cor diferente, um corte possivelmente revelasse um líquido policromático, confesso que pouco ou mesmo nenhum sentido pude auferir do qualificativo “puro”, deixe-se de lado “português”; e quanto a “bom”, eis aí talvez um dos vocábulos que, ao lado de “interessante”, tragam em si tanta amplidão de significado que, no final, acabam mesmo por nada significar. Em todo caso, minha imediata observação, visto a pausa de meu interlocutor sugerir-me que algo devesse observar, foi bem esta: “How interesting!”

Encontrávamo-nos no backyard de uma casa Quaker (numa meeting house, como lá se lhes chama) e saboreávamos uma boa taça de Earl Grey, temperado, à moda inglesa, com uma indubitável dosezinha de leite. Tomando ele conhecimento de que eu me ocupasse de ensino, depois de me haver relatado algumas de suas viagens para “além da Taprobana”, entrou aquele Vasco da Gama bretão a falar-me da ilha Aloprina-Safo, que, caso o leitor não saiba (eu não sabia), se situa no Oceano Índico, a cerca de 230 milhas náuticas (uns 423km) ao sul das Ilhas Cocos, a oeste da costa ocidental australiana.

Por curioso e, vamos lá, “interessante”, faço a seguir um breve apanhado do relato que ouvi daquele senhor inglês sobre essa distante ilha e, mais especificamente, de seu singular sistema educacional.

A primeira curiosidade daquele lugar que de imediato me despertou a atenção foi, lá, um professor graduado impreterivelmente perceber rendimentos na ordem de 20 a 30 por cento inferiores àqueles auferidos pelos demais profissionais graduados. Não bastasse tamanho dislate, fiquei ainda sabendo que naquelas terras, onde se valoriza em excesso um esporte chamado “tutaopé”, um desportista profissional pode embolsar num único mês o que um mestre-escola talvez não chegue a receber em 20 ou mesmo 30 longos anos de estafante labuta! E isso que tal atleta não necessita saber senão assinar o próprio nome num contrato (e muitos destes, diz-se, saberão pouco mais que isso), ao passo que, por lei, não se pode mais ingressar na carreira docente sem uma graduação superior, uma “licença”, como lá se chama, a qual, somada aos 12 anos do ensino básico, perfará um total de, no mínimo, 16 anos de preparação ao trabalho.

Tão baixa remuneração não deixou de criar problemas ao governo, que se vê pressionado pela sociedade civil, a queixar-se ou da falta de docentes, ou da pouca qualidade daqueles que se propõem a sê-lo. Pudera, numa sociedade em que o dinheiro representa a mola, o impulso para as ações civis, será um Ghandi, um Cristo ou uma Madre Teresa de Calcutá aquele que, tendo as necessárias e exatas qualificações, se disponha a ingressar em carreira assim tão altruísta; a não ser, claro, que não lhe sobre muito mais a fazer...

Tomou o governo federal, então, a iniciativa de estabelecer um “piso” salarial a fim de que, com o tempo, a carreira docente se mostrasse menos antipática. Algumas províncias, porém, depois de um primeiro entendimento da noção de “piso” como se fora quase um “teto” (num equívoco arquitetônico primário, mas não, parece, sem segundas intenções...), recorreram ao Supremo Tribunal Federal, alegando falta de fundos para cumprir a lei. Vendo esse pedido indeferido, seus dignitários entenderam, então, propor aos sindicados docentes que o tal piso fosse sendo alcançado aos poucos, coisa de alguns dois ou três anos, disseram (mas isso sem, no entanto, estabelecerem sequer um calendário em que os professores pudessem objetivamente enxergar seu minguado progresso financeiro). Nada feito, porém! Os sindicatos apresentaram um ultimato: ou se pagava o piso imediatamente, ou a categoria entrava em greve por tempo indeterminado!

Ora, um dos artigos da democrática e cidadã constituição de Aloprina-Safo assegura o “direito de greve”. Contudo, em serviços diretos à população (e poucos não o serão), é a greve, como se sabe, uma poderosa carta potencial; mas basta que dela efetivamente se lance mão para que tudo se vá com a breca! A hipocrisia social é tamanha, que, embora consabida seja a penúria do magistério, será sempre uma minoria a estar de fato disposta a pagar o preço da luta, que se quer, no entanto, sempre justa. A imprensa, demagógica por definição (ainda que jure e conjure ser “objetiva”), invariavelmente apresenta uma única e sempre mesma linha editorial: justa embora, não é a greve a melhor saída “no momento”, “é inoportuna”, “e como ficam os cidadãos?”, etc., etc. 

Depois, há de se considerar também que, em todo movimento grevista, existem sempre três distintas facções: (1) aqueles que efetivamente entram em greve, o que não significa deixar apenas de dar aulas, mas antes envolver-se numa série de atividades cujo fim último será criar um movimento bem-sucedido; (2) aqueles que não param suas atividades funcionais (seja porque discordam da paralisação: o que os coloca numa posição antidemocrática, visto não ter podido haver a decisão de entrar em greve senão por maioria, nos fóruns adequados; seja porque temem, e isto é sintomático no caso dos docentes, perder suas férias, tendo em vista que deverão, na volta, recuperar o calendário acadêmico, em conformidade com a lei); e (3) aqueles que simplesmente decidem, de modo egoísta, tirar “umas férias” extemporâneas, pensando, cinicamente, que haverá sempre sobra de braços a operar o movimento, e isso quando não argumentam, igualmente de modo antidemocrático, que, porque não concordam com a greve, não veem por que devam trabalhar a seu favor, e acabam assim sem fazer nada (de “férias” mesmo), sendo, depois, os primeiros a choramingar quando se lhes quer obrigar a cumprir o calendário: “E nossas férias!?”, gritam aos quatro ventos.

Serão esses os motivos por que as greves dos professores da democrática ilha de Aloprina-Safo se terminam sempre no maior e mais estrondoso fracasso.

Ao que tudo indica, em Aloprina-Safo os professores, além de pouco dinheiro, têm igualmente bem poucos poderes. Com efeito, um parecer que esses profissionais venham a chancelar não será referendado por esse ato apenas (como o é, por exemplo, um atestado médico ou, a bem dizer, uma disposição de qualquer outro profissional qualificado); tem antes de passar por uma série de mãos, numa escalada hierárquica que, mutatis mutandis, se assemelhará aos círculos do inferno dantesco. Mas isso, supostamente, se tal parecer vier de encontro ao raciocínio numérico que o governo tenciona apresentar à apreciação da comunidade nacional e internacional. Sendo, portanto, o avanço dos discentes de série para série, ou ano para ano, quase um imperativo categórico, será muito mal vista toda apreciação negativa, que, “unilateralmente” (é o que se diz), queira que um dado aluno deixe de progredir no sistema educacional. Tanto isso é assim, que em algumas comunidades educacionais deverá o docente que queira reprovar um dado aluno munir-se de um verdadeiro dossiê, o qual poderá evidentemente acabar sendo indeferido, juntamente com o parecer negativo que lhe deu origem. Como essas decisões devam ser tomadas em véspera de férias, justamente num momento em que os profissionais estão às portas do anual descanso, serão raros aqueles obstinados que se empenhem a provar ao mundo que uma espada é tão somente uma espada. Assim, o pensamento pragmático do corpo docente é: nossos alunos tiveram a chance de frequentar nossas aulas – ora, se nenhum ou muito pouco proveito puderam colher delas, que assim sigam seu caminho: a vida lhes há de ensinar o que precisam quando (e se) vierem a precisar. E a verdade é que, de fato, dos conteúdos vistos na escola, bem poucos se têm revelado de alguma utilidade efetiva.

Há aqui um paradoxo, creio eu, pois, segundo pude entender, valoriza-se um currículo utilitário, que, em outras e mais simples palavras, sirva para alguma coisa na vida do futuro egresso; todavia, esse pobre indivíduo se vê na obrigação de arrebanhar um sem-número de conhecimentos, e todos mais ou menos pela metade, os quais deverá em seguida, e se conseguir livrar-se deles, jogar ao lixo. Mas há, diz-se, uma boa razão para que assim se faça, e esta é um rito de passagem a que, muito apropriadamente, se convencionou chamar “vestibular”. Ora, não havendo vagas para todos na universidade (a constituição de Aloprina-Safo só entende como “obrigatório” o ensino básico), se vê o estudante forçado a disputar um lugar ao sol do saber universitário num concurso muito disputado (o Vestibular). E sairá vitorioso nessa contenda aquele ou aquela que tiver uma memória de elefante, que lhe possibilite lembrar-se de fórmulas, datas, nomes e não sei mais o quê. Mas tão logo entre na universidade, é abrir o latão do lixo e flosh! jogar aquilo tudo às moscas! Será, claro, sempre preciso reservar algo para si, mas aí dá pena de entender que o que se deve reservar foi tão pouco explorado: havia que dividir espaço com o resto.

Céus! Vejo que avanço já para a terceira página, justamente quando meus leitores me pedem que não escreva muito!

Façamos assim: como ainda há o que relatar sobre o que me contou aquele senhor inglês sobre a interessante ilha de Aloprina-Safo e seu mui peculiar sistema educacional, fico hoje por aqui para, na semana que vem, voltar a contar-vos mais. Deal?

Abraço!

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

PARA UMA MENINA COM UMA FLOR, ONTEM E HOJE

...ler pela primeira vez um grande livro na idade madura
é um prazer extraoridinário: diferente (mas não se pode dizer
maior ou menor) daquele que tivemos ao lê-lo na juventude.

Italo Calvino (Porque ler os clássicos)

Já fará dois ou três anos que a Jane, minha sogra, me deu a coleção Vinicius de Moares: obras escolhidas, em quatro volumes, publicação de 1983 da Livraria José Olympio Editora (Rio de Janeiro). Tão logo os recebi, usei parte de um dos livros, Livro de Sonetos, num trabalho que desenvolvia sobre essa forma poemática com uma turma de segundo ano do Ensino Médio. Depois, deixei-os na estante, quietinhos a esperar por mim. Na última sexta-feira, como devesse acompanhar alguns alunos à Feira do Livro de Porto Alegre, meti, já de saída, um dos livrinhos na mochila, sabendo que nas quase duas horas de viagem (entre ida e volta no percurso Charqueadas–Porto Alegre) eu teria de ocupar-me com algo (e sempre gostei de ler em ônibus: fazia-o mesmo quando, na hora do pique, tinha de viajar em pé, nos tempos de estudante em Porto Alegre).

Começada a viagem, meti a mão na mochila e puxei o volume estreito, de capa dura e avermelhada. Abri-o e li o título: Para uma menina com uma flor. Trata-se, caso o leitor desconheça (e não há, penso, problema algum em desconhecê-lo: tantas coisas desconhecemos), de uma coletânea de crônicas e pequenos contos que o autor escreveu para periódicos como Última Hora, Diário Carioca, Manchete, Fatos e Fotos, etc. Está a obra dividida em dois períodos: (i) 1941-1953, e (ii) 1964-1966. Lidos o “Prefácio à 1ª edição” e o poema-dedicatória “A brusca poesia da mulher amada”, decidi pular à página 93 e iniciar a leitura pelo segundo período, justamente a partir da crônica “Para uma menina com uma flor”. Quando chegávamos de volta à escola, eu quase imediatamente concluía a leitura dessas crônicas dos anos 60. No fim de semana, li aquelas do primeiro período.

Mas por que estou mencionando isso tudo assim com tantos detalhes? Que dirão tais coisas ao paciente leitor que, até o momento, só não interrompeu a leitura porque é pessoa educada e persistente? Pois vejamos se posso interessá-lo.

Como do Vinicius eu apenas conhecesse o que quase todo mundo conhece, i. é, boa parte do cancioneiro e alguns poucos sonetos: “De repente do riso fez-se o pranto...” (Soneto de separação), ou “De tudo, ao meu amor serei atento...” (Soneto de fidelidade), ou ainda “Oh, partir pela noite enluarada...” (Soneto de Oxford) – abri aquele livrinho de crônicas escolhidas como quem fosse provar um prato, um doce, um sabor novo (sabor esse, é verdade, que de saída, e sem conhecê-lo ainda, já nos dispomos não obstante a apreciar favoravelmente).

Contudo, à medida que ia lendo aquela “prosa fiada” (como o mesmo Vinicius se refere a crônica em geral), me dava conta de que já a conhecia, e aí algo maravilhoso, algo sublime e instigante se deu: tive a certeza de que já havia lido aquilo tudo! Conhecerá decerto o leitor a sensação que nos invade quando um aroma esquecido nos remete a uma referência escondida in the back of the mind, ou quando uma música, ou filme, ou uma paisagem vem evocar em nós a lembrança de algo ou alguém que guardávamos dentro de nós mesmos sem saber que o fazíamos. Pois foi exatamente essa a sensação inefável que me tomou naquele momento, em que eu me reencontrava com um Conrado que pensava já não mais existir, ou, melhor dizendo, que, no estado atual de minhas percepções, nem sequer suspeitava que jamais houvesse existido. Que com o tempo vamos mudando, isso todos bem sabemos; porém, que aquela parte de nós que deixamos para trás cai às vezes no mais completo esquecimento, disso pouco cogitamos. Apenas quando esse “nós”, esse “eu” renasce, é que nos damos conta de que nos havíamos inteiramente esquecido dele.

Mas que Conrado era esse e quando exatamente ele existiu?

Quero crer que era um adolescente, aluno do Ensino Médio (ou Segundo Grau, como então se chamava). Já tocava seu violãozinho, e Vinicius de Moraes era uma de suas fortes referências, juntamente com Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim e tantos outros compositores (ou cantautores, como tão bem se diz em espanhol e italiano). É provável que tenha tomado emprestado o livro da biblioteca, se não foi um dos seus amigos, possivelmente o João, que lhe tenha alcançado a obra. Ah, que alegria reencontrar aquela leitura e, através dela, aquele leitor que um dia fui!

Vejamos se um exemplo pode ajudar a explicar-me melhor. Em “Conto rápido”, a personagem principal, uma sedutora mulher, “apertada num maiô azul”, desmaia na praia ao saber que o mar levara seu filho, e o texto se conclui assim: “afrouxada sobre a areia branca, seu corpo fazia uma graciosa mancha azul”. Esse desfecho, com essas palavras, me pegou de um jeito quando era adolescente, que não pude deixá-lo em paz (ou ele a mim) e, tão logo pude, copiei descaradamente a ideia do poetinha nestes versos que são parte de uma canção que escrevi para a Luciana, uma prima muito querida: “Uma menina, uma cicatriz / Deitada na areia do sonho que fiz”. Não há azul algum aí, é claro, nem a personagem da canção se apresentava como sedutora (era antes uma criança, uma menina). Porém, foram esses versos meus (bons ou maus, não entremos agora no mérito) buscados ali naquele texto do Vinicius de Moraes por um Conrado adolescente e, na época, aspirante a “cantautor”. Ora, e disso me lembrei ali, naquele momento, enquanto o ônibus nos balançava rumo a Porto Alegre.

Outras lembranças tive, associadas àquela leitura, mas sempre coisas assim esparsas, que me vinham de súbito aqui e ali. Ah, a emoção do reencontro, e quando justamente acreditava desconhecer o que me propunha a ler!

Mas, se houve reencontro, houve também descoberta. Era o mesmo livro do Vinicius de Moraes, mas era também um novo livro, pois este leitor, o de quarenta e tantos anos que hoje sou, não somente conhece bem melhor a expressão, mas também boa parte das referências ali feitas, aquilo que chamamos “conhecimento de mundo”, lhe é agora bem mais amplamente acessível.

Se, como escreveu Italo Calvino, “um clássico é um livro que não termina nunca de dizer o que tem a dizer-nos”, podemos (ou, pelo menos, eu posso) considerar Para uma menina com uma flor uma referência clássica. Saravá, Vinicius!

Este texto, porque trata de leitura e leitores, queria humildemente dedicá-lo à grande leitora que foi a vó Albertina. Ela acaba de nos deixar, mas eu vou guardar para sempre, e com muito carinho, a lembrança de nossas conversas sobre livros, autores e mais tantas outras histórias.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (2ª e última parte)

Devo recordar as dificuldades específicas que, enquanto italiano, encontro em minhas relações tanto com o mundo quanto com a linguagem, quero dizer, enquanto escritor num país que apresenta contínuas frustrações a quem procure compreendê-lo. A Itália é um país onde se verificam muitas histórias misteriosas, as quais são amplamente discutidas e comentadas diariamente mas a cuja solução não se chega nunca. É um país onde cada acontecimento esconde uma conspiração secreta, que assim secreta permanece, onde nenhuma história chega ao fim porque dela não se sabe o início, ainda que nos deleitem os infinitos detalhes que se acham entre início e fim. A sociedade italiana vive mudanças muito rápidas, mesmo nos costumes, no comportamento: tão rápidas que não chegamos a compreender em que direção nos movemos, e cada fato novo tende a desaparecer, aniquilado pela avalanche de recriminações e por alarmes de degradação e de catástrofe, ou então por declarações que se apoiam em nossa tradicional habilidade de desembaraço e sobrevivência.

Eis por que as histórias que podemos contar se veem marcadas, de um lado, pelo sentido do desconhecido e, de outro, por uma necessidade de construção, de linhas traçadas com exatidão, de harmonia e geometria. É esse o nosso modo de reagir às areias movediças que sentimos debaixo dos pés.

Quanto à linguagem, essa foi atingida por uma espécie de peste. O italiano está se tornando uma língua sempre mais abstrata, artificial, ambígua. As coisas mais simples nunca são ditas diretamente, e os substantivos concretos são sempre usados mais raramente. Essa epidemia atingiu primeiramente os políticos, os burocratas, os intelectuais, e depois se generalizou, estendendo-se a grupos sempre mais amplos no que se refira a uma consciência política e intelectual. A tarefa do escritor é, pois, combater essa peste, fazendo sobreviver uma linguagem direta e concreta. O problema, porém, é que a linguagem cotidiana, que até recentemente era a fonte viva a que podiam sempre recorrer os escritores, essa linguagem hoje não está imune à infecção.

Em suma, creio que os italianos nos encontremos hoje na situação ideal para atrelar nossa atual dificuldade em escrever romances a reflexões gerais sobre a linguagem e o mundo.

Uma importante tendência internacional na cultura de nosso século – a qual poderíamos chamar de “abordagem fenomenológica” em filosofia e de “efeito de estranhamento” em literatura – nos impele a romper essa tela de palavras e conceitos e, assim, a ver o mundo como se este se apresentasse pela primeira vez ao nosso olhar. Mas o que ocorre quando busco esvaziar minha mente e lançar sobre a paisagem um olhar livre de toda referência cultural precedente? Percebo que nossa vida é como que programada para a leitura à medida que fico sempre procurando ler a paisagem, o prado, as ondas do mar. Essa programação não quer dizer que nossos olhos se encontrem obrigados a seguir um instintivo movimento horizontal da esquerda para a direita, depois de novo à esquerda um pouco mais abaixo, e assim por diante. (Naturalmente, falo aqui de olhos programados a ler páginas ocidentais; olhos japoneses, por exemplo, usariam um programa vertical.) Ler, mais do que um exercício óptico, é antes um processo que envolve mente e olhos conjuntamente. Trata-se de um processo de abstração ou, melhor, uma extração de concretude a partir de operações abstratas: é o reconhecimento de signos distintivos, o despedaçamento de tudo quanto vemos em elementos mínimos, para a seguir recompô-los em segmentos significativos e, assim, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças, recorrências, singularidades, substituições, redundâncias.

A comparação entre o mundo e um livro tem já uma longa história, que vem da Idade Média e do Renascimento. Em que linguagem está escrito o livro do mundo? Segundo Galileu, tratar-se-ia da linguagem da matemática e da geometria, uma linguagem de absoluta exatidão. Mas é desse modo que ainda podemos ler o mundo de hoje? Talvez sim, caso se trate do extremamente longínquo: galáxias, quasares, supernovas. Contudo, nosso mundo cotidiano se nos apresenta escrito antes como num mosaico de linguagens, como um muro grafitado, repleto de escritas traçadas umas sobre as outras, uma espécie de palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito muitas vezes, algo como uma colagem de Schwitters, uma estratificação de alfabetos, de citações heterogêneas, de gírias, de ágeis caracteres, como os que aparecem na tela de um computador.

E pergunto: é uma mimese dessa linguagem do mundo que devemos buscar alcançar? Isso fizeram alguns dos mais importantes escritores do nosso século: podemos encontrar exemplos dessa abordagem nos Cantos, de Erza Pound, ou em Joyce, ou mesmo em alguma vertiginosa página de Gadda, sempre seduzido pela obsessão de unir cada detalhe ao universo inteiro.

Mas será mesmo a mimese o caminho certo? Parti da oposição inconciliável entre mundo escrito e não escrito; ora, se as suas linguagens se fundem, o meu raciocínio cai por terra. O verdadeiro desafio para um escritor é falar do intrincado emaranhado de nossa situação usando uma linguagem que pareça tão transparente a ponto de criar um sentido de alucinação, como conseguiu fazer Kafka.

Talvez a primeira operação para que se renove uma relação entre linguagem e mundo seja a mais simples: fixar a atenção sobre um objeto qualquer, o mais banal e familiar, e então descrevê-lo minuciosamente, como se fosse a coisa mais nova e mais interessante do universo.

Uma das lições que podemos extrair da poesia do nosso século é o investimento de toda a nossa atenção, de todo o nosso amor pelo detalhe em algo que esteja muito distante de qualquer imagem humana: um objeto ou planta ou animal em que se identifique o nosso sentido da realidade, a nossa moral, o nosso eu, como fez William Carlos Williams com um cíclame, ou Marianne Moore com um náutilo, ou ainda Eugenio Montale com uma enguia.

Na França, desde que Francis Ponge começou a escrever poesias em prosa sobre singelos objetos como uma barra de sabão ou um pedaço de carvão, o problema da “coisa em si” continuou a marcar a investigação literária, passando por Sartre e Camus, até alcançar sua expressão máxima na descrição de um quarto de quilo de tomate, realizada por Robbe-Grillet. Mas penso que a última palavra não tenha ainda sido dita. Recentemente, na Alemanha, Peter Handke escreveu um romance baseado inteiramente em paisagens. E mesmo na Itália uma abordagem visual é o elemento comum de alguns dos novos escritores que tenho lido.

O meu interesse pelas descrições se deveu também ao fato de que meu último livro, Palomar, contém muitas descrições. Procuro fazer de modo que a descrição se torne narração, ainda que não deixe de ser descrição. Em cada uma dessas minhas breves histórias, um personagem pensa apenas com base naquilo que vê e desconfia de todo pensamento que lhe venha de outros modos. O meu problema ao escrever esse livro foi que nunca tinha sido aquilo que se chamaria um “observador”. Portanto, a primeira operação que tive de fazer foi justamente concentrar minha atenção sobre algo para, em seguida, descrevê-lo ou, melhor dizendo, fazer essas duas coisas ao mesmo tempo, uma vez que, não sendo eu um observador, se por exemplo vejo uma iguana no zoológico e não escrevo imediatamente tudo o que vi, corro o risco de esquecer-me de como era o bicho.

Devo dizer que a maior parte dos livros que escrevi, assim como a daqueles que tenho em mente escrever, nasce da ideia de que escrever um livro assim me pareça a princípio impossível. Porém, quando estou convencido de que um certo tipo de livro está completamente além das possibilidades de meu temperamento e de minhas capacidades técnicas, é justamente quando me sento à escrivaninha e me ponho a escrevê-lo.

Isso aconteceu com meu romance Se uma noite de inverno um viajante: comecei imaginando todos os tipos de romance que jamais escreveria. A seguir, tentei escrevê-los, procurando evocar dentro de mim mesmo a energia criativa de dez diferentes romancistas imaginários.

Um outro livro que estou escrevendo trata dos cinco sentidos. Nele busco demonstrar que o homem contemporâneo não perdeu o uso desses sentidos. O meu problema ao escrever esse livro é que meu olfato não é lá muito desenvolvido, falta-me atenção auditiva, estou longe de ser um gourmet, minha sensibilidade tátil é bastante imprecisa e, ainda por cima, sou inteiramente míope. Em cada um dos cinco sentidos devo, portanto, fazer um esforço tal, que me permita dominar uma gama de sensações e nuances. Não sei se conseguirei, mas neste caso, como nos outros, meu escopo não é tanto o de fazer um livro quanto o de mudar a mim mesmo, escopo que penso deva ser aquele de toda empresa humana.

Pode o leitor objetar que prefere os livros que tragam uma experiência verdadeira, obtida integralmente. Pois bem, assim também eu prefiro. Mas, na minha experiência, entendo que o estímulo para escrever está sempre ligado à falta de algo que eu gostaria de conhecer e possuir, algo fugidio, esquivo. E, como conheço bem esse tipo de estímulo, penso poder percebê-lo também nos grandes escritores, cujas vozes parecem alcançar-nos desde o cume de uma experiência absoluta. O que esses autores nos transmitem é o sentido da aproximação da experiência, mais do que o sentido da experiência efetivamente alcançada. O segredo, me parece, é saber conservar intacta a força do desejo.

Julgo que de certo modo sempre escrevemos sobre algo que não sabemos: escrevemos a fim de que o mundo não escrito possa exprimir-se através de nós. No momento em que minha atenção se desloca da ordem regular das linhas escritas e segue a complexidade móvel que nenhuma frase pode conter ou exaurir, me sinto próximo de entender que do outro lado das palavras existe algo que procura sair do silêncio, algo que busca significar através da linguagem, como se desse golpes numa parede de prisão.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (1ª parte)

O texto a seguir, cujo título é o que vai aí acima, é do autor italiano Italo Calvino (1923-1985). É a forma escrita de uma conferência lida pelo autor no Institute for the Humanities da Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Foi publicado no mesmo ano no "The New York Review of Books" e, em 1985, na revista "Letteratura Internazionale". A versão de que disponho é aquela que se encontra às páginas 114-125 do livro Mondo scritto e mondo non scrito (Milão: Oscar Mondadori, 2002). 

Os leitores que se interessarem em ter o texto original, sobretudo aqueles que, como Sandra Dall'Onder, Deise Quintana e Raquel Benvenutti (professoras da ACIRS), conhecem muito melhor do que eu a língua italiana, escrevam-me, que o tenho digitalizado. Agradeceria se me apontassem erros, de modo que possa sempre melhorar esta tradução.

Publico-o em duas partes, porque há leitores que já me reclamaram da extensão dos textos aqui publicados. (Ah! leitores de pouca fé! Talvez, muito mais provável, de pouco tempo mesmo.)

Vamos ao Calvino.

Pertenço àquela parte da humanidade – uma minoria em escala planetária, mas, creio eu, uma maioria entre o meu público – que passa grande parte de suas horas de vigília num mundo especial, um mundo feito de linhas horizontais, no qual as palavras se sucedem uma após a outra, em que cada frase e cada parágrafo ocupam seu lugar estabelecido: um mundo que pode ser muito rico, talvez ainda mais rico do que aquele não escrito, mas que em todo caso requer um ajustamento especial para que nos situemos em seu interior. Quando me desprendo do mundo escrito para encontrar meu lugar no outro, naquele que costumamos chamar de o mundo, feito de três dimensões, cinco sentidos, povoado de nossos semelhantes, isso para mim equivale sempre a repetir o trauma do nascimento, a dar forma de realidade inteligível a um conjunto de sensações confusas, a escolher uma estratégia para fazer face ao inesperado sem ser destruído.

Esse novo nascimento se faz sempre acompanhar de ritos especiais, que significam o ingresso numa vida diversa: por exemplo, o rito de pôr os óculos, uma vez que, sendo míope, leio sem eles, ao passo que para a maioria presbita é o rito oposto que se impõe, ou seja, retirar os óculos que se usam apenas para a leitura.

Cada rito de passagem corresponde a uma mudança de atitude mental: quando leio, cada frase deve ser compreendida, ao menos em seu significado literal, devendo pôr-me em condições de formular um juízo: o que li é verdadeiro ou falso, certo ou errado, agradável ou não. Na vida ordinária, ao contrário, se apresentam sempre inúmeras circunstâncias que fogem a meu entendimento, desde as mais gerais até as mais banais: encontro-me com frequência frente a situações sobre as quais não saberia pronunciar-me, sobre as quais prefiro suspender o julgamento.

Enquanto espero que o mundo não escrito se esclareça a meus olhos, sempre uma página escrita ao alcance da mão, na qual posso voltar a imergir; e me apresso a fazê-lo, com a maior satisfação: nesta ao menos, ainda que consiga compreender tão somente uma pequena parte do conjunto, posso sempre cultivar a ilusão de ter tudo sob controle.

Creio que mesmo na minha juventude as coisas tenham sido assim, mas naquela época tinha eu a ilusão de que mundo escrito e mundo não escrito se iluminassem reciprocamente, que as experiências de vida e as experiências de leitura fossem de certo modo complementares e que a cada passo avançado num campo correspondesse um passo à frente no outro. Hoje posso dizer que do mundo escrito conheço o bastante: no interior dos livros, a experiência é sempre possível, mas seu alcance não se estende além da margem branca da página. Em contrapartida, o que sucede no mundo que me circunda não acaba de surpreender-me, de espantar-me, de desorientar-me. Tenho assistido a muitas mudanças na minha vida, no vasto mundo, na sociedade, e a muitas mudanças até em mim mesmo; porém, não consigo prever nada, nem no que se refira a mim mesmo, nem no que diga respeito às pessoas que conheço, nem, muito menos, quanto ao gênero humano. Não saberia prever as relações futuras entre os sexos, entre as gerações, os desenvolvimentos futuros da sociedade, das cidades e das nações, que tipo de paz haverá ou que tipo de guerra, que coisa significará o dinheiro, quais objetos de uso cotidiano desaparecerão e quais novos aparecerão, que tipo de veículos e de maquinário se usarão, qual será o futuro do mar, dos rios, dos animais, das plantas. Sei bem que compartilho essa ignorância com aqueles que, ao contrário, pretendem saber: economistas, sociólogos, políticos; mas o fato de não encontrar-me sozinho nessa ignorância não me serve de consolo algum.

Pode dar-me algum consolo o pensamento de que a literatura sempre compreendeu alguma coisa mais que as outras disciplinas, mas isso me faz recordar que os antigos viam nas letras uma escola de sabedoria, e então me dou conta de quanto hoje toda ideia de sabedoria seja inatingível.

Neste ponto o leitor me perguntará: se dizes que teu verdadeiro mundo é a página escrita, se apenas te sentes à vontade, por que hás de sair então desse mundo, por que tens de aventurar-te neste vasto mundo que não estás em condições de dominar? A resposta é simples: para escrever. Porque sou um escritor. O que se espera de mim é que eu olhe em torno a mim e capture rápidas imagens do que sucede, para em seguida debruçar-me sobre minha escrivaninha e retomar o trabalho. É para recolocar em movimento a minha fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não escrito.

Mas procuremos ver melhor como andam as coisas. É assim mesmo que ocorre? As principais correntes filosóficas do momento dizem que não, que nada disso é verdadeiro. A mente do escritor é obcecada pelas contrastantes posições de duas correntes filosóficas. A primeira diz que o mundo não existe; existe apenas a linguagem. A segunda diz que a linguagem comum não tem sentido; o mundo é inefável.

De acordo com a primeira, a espessura da linguagem se eleva acima de um mundo feito de sombra; de acordo com a segunda, é o mundo que se põe altaneiro, como uma muda esfinge de pedra, sobre um deserto de palavras que se parecem à areia que o vento leva. A primeira corrente estabeleceu suas fontes principais na Paris dos últimos vinte e cinco anos; a segunda decorre do início do século, partindo de Viena, e, passando por várias transmigrações, readquiriu atualidade em anos recentes mesmo na Itália. Ambas as filosofias têm em si fortes razões. Ambas representam um desafio ao escritor: a primeira exige o uso de uma linguagem que responda apenas a si mesma, às suas leis internas; a segunda, o uso de uma linguagem que possa fazer frente ao silêncio do mundo. Ambas exercem sobre mim seu fascínio e sua influência. Isso significa que acabo não seguindo uma nem outra, não crendo numa nem na outra. Em que creio, então?

Vejamos um momento se posso tirar alguma vantagem dessa difícil situação. Antes de tudo, se sentimos assim intensamente a incompatibilidade entre o escrito e o não escrito, é porque somos muito mais conscientes do que seja o mundo escrito: não podemos esquecer-nos nem mesmo por um átimo de que é um mundo feito de palavras, usadas de acordo com as técnicas e as estratégias próprias da linguagem, conforme os sistemas especiais em que se organizam os significados e as relações entre significados. Temos consciência de que, quando nos contam uma história (e quase todos os textos escritos contam uma história, mesmo um ensaio filosófico, mesmo um balanço de sociedade anônima, mesmo uma receita de cozinha), essa história é mobilizada a partir de um mecanismo, similar aos mecanismos de toda e qualquer história.

Esse é um grande passo à frente: hoje temos condições de evitar muitas confusões entre o que é linguístico e o que não é, e assim podemos ver claramente as relações que se interpõem entre os dois mundos.

Não me resta senão fazer a contraprova e verificar que o mundo externo está sempre e não depende das palavras, sendo antes irredutível às palavras, não havendo linguagem ou escritura que possa exauri-lo. Basta-me voltar as costas às palavras depositadas nos livros, enfiar-me no mundo de fora, esperando alcançar o coração do silêncio, o verdadeiro silêncio cheio de significado... Mas qual é o caminho para alcançá-lo?

quem, para ter um contato com o mundo de fora, se limite a comprar um jornal toda manhã. Eu não sou assim ingênuo. Sei que dos jornais posso extrair apenas uma leitura do mundo feita por outros, ou antes feita por uma máquina anônima, especializada em escolher da poeira infinita de eventos aqueles que podem ser selecionados comonotícia.

Outros, a fim de fugir do mundo escrito, ligam a televisão. Mas eu sei que todas as imagens, mesmo aquelas colhidas ao vivo, fazem parte de um discurso construído, exatamente iguais àquelas dos jornais. Portanto, sem comprar o jornal, sem ligar a televisão, me limitarei a sair e andar a passear.

Mas cada coisa que vejo nas ruas da cidade tem seu lugar no contexto da informação homogeneizada. Esse mundo que vejo, aquele que se reconhece normalmente como o mundo, se apresenta a meus olhospelo menos em grande parte conquistado, colonizado pelas palavras, é um mundo que traz consigo uma pesada crosta de discurso. Os fatos de nossa vida estão classificados, julgados, comentados, e antes mesmo que ocorram. Vivemos num mundo em que tudoestá lido antes mesmo que venha a existir.

Não apenas tudo o que vemos, mas os nossos próprios olhos estão saturados de linguagem escrita. O hábito da leitura transformou ao longo dos séculos o homo sapiens em homo legens, mas esse homo legens não é necessariamente mais sapiente do que antes. O homem que não lia sabia ver e ouvir uma quantidade de coisas que nós já não percebemos: as pegadas do animal que caçava, os sinais da chuva ou do vento que se aproximava; e ele reconhecia as horas do dia a partir da sombra de uma árvore e as da noite ao considerar a altura das estrelas sobre o horizonte. E quanto à audição, o olfato, o paladar, o tato, a sua superioridade sobre nós não pode ser posta em dúvida.

Isso dito, é preciso esclarecer que não venho aqui propor o retorno ao analfabetismo a fim de que se recupere o saber das tribos paleolíticas. Lastimo tudo o que possamos haver pedido, mas não me esqueço jamais de que os ganhos superam as perdas. O que busco entender é o que podemos fazer hoje.

(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)