LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

sábado, 28 de setembro de 2013

METODOLOGIA DE PESQUISA INTERPRETATIVA (RELATÓRIO DE CURSO)

NOTA EXPLICATIVA

O texto abaixo é um relatório feito por mim, sob solicitação do Prof. Dr. Pedro M. Garcez, para o Curso Livre METODOLOGIA DE PESQUISA INTERPRETATIVA, ministrado por ele no PPG/Letras da UFRGS em maio e junho de 2013. Tendo sido avaliado como "plenamente satisfatório", publico-o aqui para que possa servir a outros pesquisadores interessados nessa metodologia. Escusado seria dizê-lo, mas, apesar da avaliação favorável, eventuais falhas de compreensão se deverão exclusivamente ao relator. Aproveito, por fim, para agradecer ao Professor as aulas e o incentivo.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS)
INSTITUTO DE LETRAS – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPG/LETRAS)
ESTUDOS DA LINGUAGEM – LINGUÍSTICA APLICADA

Disciplina: METODOLOGIA DE PESQUISA INTERPRETATIVA
(LET 00002 – CURSO LIVRE, 2013/1)
Professor: PEDRO M. GARCEZ, PhD
Aluno: Conrado Abreu Chagas
Data: Maio/junho de 2013


RELATÓRIO DE CURSO

Conrado Abreu Chagas*

Nos quatro encontros do curso, o Prof. Pedro Garcez buscou apresentar aos alunos em que consistia a metodologia de pesquisa interpretativa. De saída, informou-nos que o curso lhe fora solicitado e que, a depender somente de si, possivelmente não o daria. A razão, algo incompreensível de início, se fez inteiramente clara no decorrer das aulas. Primeiramente, trata-se de assunto bastante complexo para apenas quatro encontros. Depois, e talvez mais importante, ainda que seja especialista nessa abordagem metodológica, encontra-se o Professor numa posição de pesquisador que vai muito além de mero “leitor” de métodos.

O próximo passo foi inquirir dos alunos o que buscavam ali exatamente, ou seja, em que medida a abordagem metodológica a ser ali exposta se ajustava àquilo que andavam pesquisando ou planejavam pesquisar. Todos tivemos espaço e tempo para informar a ele e ao grupo por que fazíamos o curso, enquanto o Professor tomava nota, literalmente. Da fala de todos, salvo as exceções do costume, pôde-se perceber que o conhecimento sobre método interpretativo era ainda bastante incipiente. Não creio que o Professor esperasse outra coisa, a despeito das leituras que, por e-mail, nos havia proposto, as quais todos àquela altura já teríamos feito ou, ao menos, andássemos fazendo.(1)

As aulas tiveram uma dinâmica regular e quase invariável. À frente do grupo em forma de semicírculo estava o Professor, e atrás deste, em tela, um roteiro, que foi rigorosamente seguido. O modo de exposição do conteúdo foi dialogado, ainda que, por razões óbvias, com turnos bem maiores do Professor. No início de cada encontro (à exceção, por razões práticas, do último), o Professor, ao retomar a aula anterior, solicitava aos alunos que se pronunciassem livremente sobre dúvidas, considerações ou observações que julgassem pertinentes.

Essa, portanto, a forma. Quanto ao conteúdo, partiu-se do próprio termo “interpretativo”, ao qual se deu preferência em detrimento do termo “qualitativo”. As razões dessa opção foram mais ou menos aquelas apresentadas em Erickson: (a) mais inclusivo; (b) evita a conotação de “não quantitativo”, presente no termo “qualitativo”; e (c) indica a característica-chave da metodologia interpretativa: o interesse no significado humano da vida em sociedade e em sua elucidação e exposição pelo pesquisador.

A grande questão que se põe o pesquisador que se utiliza do método interpretativo é “O que está acontecendo aqui?”. A resposta a essa questão, porém, não se dará apenas a partir do ponto de vista do pesquisador, ainda que não se possa esconder e/ou neutralizar esse ponto de vista: deve-se levar em conta, como fundamental, o ponto de vista das pessoas que atuam no ambiente estudado. Nesse sentido, será o próprio pesquisador, mesmo que desejasse diversamente, também um desses atores.

Mas no que, então, se distinguem as demais pessoas que fazem parte daquele cenário sob estudo e o pesquisador? Já não me recordo se foi Erickson, Mason ou Garcez que, em tom de brincadeira, mas com muita eficácia didática, observou que “o último a descobrir a existência da água seria provavelmente o peixe”.(2) Com efeito, a vida cotidiana se torna invisível para aqueles que transitam localmente.

Parece residir aí um paradoxo: sem “entrar” efetivamente na comunidade estudada, não terá o pesquisador condições de compreendê-la (ao menos não se quiser ir além da relação causa e efeito, ou sujeito e objeto, característica de uma abordagem quantitativa tout court). Ao mesmo tempo, se essa “entrada” se der integralmente, já não terá mais o pesquisador como analisar o que se lhe põe diante dos olhos, pois talvez sequer o veja!

A resolução desse aparente paradoxo residiria na observação de Erickson de que o “sense-making is the heart of the matter”. E o sentido está nas ações, não no comportamento. Nisto se distinguirá a abordagem interpretativa da abordagem comportamentalista/behaviorista: à segunda basta analisar o comportamento, ao passo que à primeira importam o comportamento e seu significado social, ou seja, a ação.

A ação se depreende dos eventos. “Ver” os eventos é poder extrair-lhes as ações. Jung (2009), remetendo-nos a Erickson, nos fala do conceito de “estranhamento”: “um esforço sistemático no sentido de estranhar uma situação já familiar” (p.73). (3) Não chegamos a comentá-lo em aula, mas não é improvável que aqui Erickson se tenha valido da noção platônica de “espanto” ou “admiração”, como aparece no diálogo do velho Sócrates com o jovem Teeteto. Em todo o caso, não será talvez incorreto dizer que é o estranhamento “o fio de Ariadne” que permite ao pesquisador participar localmente da comunidade que está estudando, sem por isso deixar de ser “reflexivo”, ou seja, sem que abdique de buscar identificar o significado das ações nos eventos cotidianos a partir do ponto de vista dos próprios atores.

O significado das ações se encontraria, assim, na comparação entre o que nelas há de local e não local. Daí a importância, na pesquisa de Jung, por exemplo, de ir além do espaço “sala de aula” e mesmo “escola”, de ir à comunidade, de ir à casa dos alunos e seus pais, à igreja, de compreender até a própria formação geográfica e histórica do município. O fato de o uso do alemão e do português naquela comunidade estar associado à questão do gênero dos falantes só pôde ser desvendado pela “triangulação” de interpretações buscadas em ambientes distintos, ainda que intimamente conectados.

Em termos estritamente metodológicos, vale salientar a observação do Professor de que é ingenuidade crer que se possa entrar em campo de mãos vazias. Nesse sentido, o manual de Mason é bastante relevante, uma vez que nos dá, passo a passo, um procedimento pré-campo, se assim nos podemos expressar. Do quebra-cabeça inicial vão se construindo as perguntas, e destas os procedimentos de pesquisa. Cabe aqui observar que, em seu relatório, Jung reserva todo um capítulo em que nos apresenta um referencial teórico muito bem sedimentado. Não é improvável que parte desse referencial se tenha construído contemporaneamente à atuação da pesquisadora em campo. Registre-se, em todo caso, que com toda a certeza essa pesquisadora não entrou em campo sem perguntas.

E já que falamos em perguntas, cabe aqui distingui-las de hipóteses. Uma hipótese (do grego hypo + tithenai: embaixo/sob + pôr) é uma conjectura, uma presunção, o que em si pressupõe já uma resposta, ainda que provisória, a confirmar-se ou não (daí seu sentido etimológico de estar “na base”). Uma pergunta quer evidentemente uma resposta, mas não a pressupõe necessariamente. É a hipótese, portanto, uma antecipação, ao passo que a pergunta tenderá antes a organizar de preferência a antecipar. A hipótese tem de necessariamente ser comprovável, e essa comprovação ou rejeição dependerá de dados que são normalmente “coletados”. Já a pergunta, ao menos em pesquisa interpretativa, será respondida ou não, igualmente a partir de dados, mas estes não são “coletados”, como se estivessem no mundo a esperar que os apanhássemos. Sendo a busca de sentido “the heart of the matter”, e estando esse sentido presente nas ações das pessoas envolvidas em dado cenário, e entre elas o próprio pesquisador, os dados se dirão judiciosamente “gerados”, e não “coletados”: são eles na verdade “produzidos”, mas não num sentido contrafeito ou falso. Longe disso! Falar em produção ou geração de dados é, antes, um modo de encarar sinceramente o fato de não poder haver de fato neutralidade nem objetividade absolutas em grande parte das ciências humanas.

Isso nos leva agora à noção de “plausibilidade”. Se a partir de hipóteses, por meio de provas ou refutações, se chega a generalizações (quiçá mesmo a princípios de valor universal), em pesquisa interpretativa pode-se também chegar a padrões de generalização. O critério de validade aqui não será, porém, o silogismo ou a relação de causa e efeito, mas antes a “persuasão”. O pesquisador, agora autor e “responsável” por seu discurso, que se materializa num “relatório de pesquisa”, convidará o leitor a refletir consigo, apresentando-lhe e analisando com ele os dados produzidos. O leitor terá visto como esses dados foram produzidos e verá a seguir como eles podem ser analisados. O leitor será assim o “coanalista”. Não será ele o responsável pela análise, assim como não o fora pela produção dos dados. O responsável será sempre o pesquisador. Mas o leitor será convidado a analisar conjuntamente, a avaliar junto com o pesquisador e autor do relatório a relevância, a pertinência, numa palavra, a plausibilidade dos dados. O autor convidará, assim, seu leitor a “ver” o mundo para além dos dados em si, ainda que estes sejam a porta de ingresso àquele.

Como se pode ver, estamos já no relatório, tema detidamente tratado no último encontro. A sugestão que nos deu o Professor quando da apresentação e análise dos dados é a de que procurássemos ser diretos, sem rodeios, e isso desde o título da seção ou capítulo em que fôssemos apresentar nossa análise. A unidade que utilizou foi a “asserção”. Essa deveria, já dissemos, vir enunciada já no título da seção (ou capítulo). A seguir, como introdução, a sugestão é a de fazer-se um comentário interpretativo dessa asserção. Logo a seguir, apresenta-se então o dado. Este deve obviamente ser situado, e bem situado, e então, e só então, reproduzido. E que não se fique aí: é evidente que esse dado precisa ser detidamente analisado. A seção se concluirá com um comentário interpretativo de retomada, como se perguntássemos a nosso coanalista-leitor: “Você viu?”

Haveria decerto muito mais a dizer, mas, como isto já vai se estendendo além do planejado, quero concluir com apenas mais um comentário. Esse tem a ver com o que em aula se nomeou “contraindicações”: aquilo que aponta numa direção diversa daquela que até então, a partir de outros dados, pensávamos que fosse a direção plausível. O procedimento aqui, nos diz o Professor, é justamente o de investigar esse dado divergente. Mais: é preciso mesmo buscá-lo. A persuasão será tanto mais eficiente quanto mais abrirmos o flanco. Não nos queremos suicidar, bem entendido! A ideia é bem outra: no relatório, o autor “abre o flanco” a fim de buscar justamente defender-se analiticamente, e o faz sempre convidando o leitor a entender consigo a plausibilidade dos padrões de generalizações que avança.

AVALIAÇÃO

Como já mencionei no início deste relatório, o tema do curso pede mais tempo para ser tratado. O modo como nos foi apresentado e as leituras bem selecionadas a que tivemos acesso nos permitiram, no entanto, ter já uma ideia bastante boa do assunto; ao menos abriu-nos uma porta de acesso. Meu relatório se ressentirá talvez da pouca profundidade de minha leitura, assim como da atenção deficiente que pude dar a tantos e tão variados detalhes a envolverem o assunto. Que se registre, porém, que nunca esse relatório se quis exaustivo, nem será essa a expectativa do Professor. Não obstante, conto com que alguns pontos relevantes tenham sido abordados e, dentro de meus limites, adequadamente desenvolvidos.

Vim fazer este curso por indicação de minha orientadora, a Prof.ª Luciene Simões, que viu nele uma excelente oportunidade de eu tomar conhecimento da metodologia interpretativa. Creio que não se enganou.

Ainda estamos no início de nosso trabalho (ingressei agora em março de 2013) e, portanto, não será ainda possível dizer com certeza se de fato a melhor abordagem é esta, ou será outra (ando um tanto ansioso com isso, naturalmente). Não é improvável que devamos ter de usar mais de uma. Foi o que imaginei quando escrevi o projeto de ingresso, nisso me baseando em pesquisas de W. Labov, P. Eckert, L. Milroy, S. Gal e S. M. Bortoni-Ricardo, ou no que entendi ser a metodologia lá empregada.

Das leituras sugeridas, me agradaram muitíssimo Erickson e Jung. Garcez, por muito breve e ao mesmo tempo amplíssimo, e Mason, por ir “além de espaços educacionais”, me atraíram menos. É possível que me equivoque e não é improvável que volte a essas referências in due course.

É evidente que, no curto espaço de quatro encontros, não houve tempo para exercícios, mas talvez pudéssemos (como sugeriu uma colega na última aula) fazer todos a leitura de um mesmo relatório, o qual nos serviria de referência para pontos específicos quando necessitássemos de alguma ilustração.

*Professor de Língua Inglesa e Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul – Câmpus Charqueadas), mestre em Estudos da Linguagem pela UFRGS e aluno de doutorado do PPG/Letras da UFRGS.


NOTAS

(1) ERICKSON, F. (1990) Qualitative Methods. In R. L. Linn & F. Erickson (Orgs.), Quantitative Methods; Qualitative Methods (Vol. 2, pp. 75-194). Nova York: Macmillan.

GARCEZ, P. M. (2008) Microethnography in the Classroom. In K. King & N. H. Hornberger (Orgs.), The Encyclopedia of Language and Education, Vol. 10, Research Methods in Language and Education (pp. 257-272). Berlim: Springer.

MASON, J. (1996) Qualitative Researching. Londres: Sage.

(2) O prof. Pedro Garcez, em comentário a este relatório, faz neste ponto a seguinte observação: “Acho que nenhum desses, que já repetem o que alguém disse antes”.

(3) O Prof. Pedro Garcez nos solicitou a leitura de um relatório de pesquisa interpretativa, e a minha escolha foi a tese de doutorado de Neiva Maria Jung: A (Re)produção de Identidades Sociais: na Comunidade e na Escola. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2009.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

NO DENTISTA, OU DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

Nada como um cigarro depois do dentista. Um crime depois de sair da prisão. A gente não tem mesmo jeito. Eu, ao menos, pareço não ter.

Consegui finalmente ser atendido para que se fizesse a restauração do dente 26, depois do canal. É estranho que o dentista que tratou o canal (o “endodontista”) não tivesse ele mesmo feito a restauração, tendo apenas deixado ali algo provisório. É a especialização crescente dos saberes, o fim da “clínica geral”, por assim dizer.

Isso não era o que acontecia antes. A Dr.ª Neli Susin, por exemplo, fazia tudo, do princípio ao fim, e não era por falta de especialização, pois havia estudado clínica odontológica inclusive no Canadá. Tão logo a gente se deitava na sua cadeira, e já na primeira consulta, ela dava início ao tratamento, enquanto anotava no prontuário tudo que era preciso ser feito. Em mais alguns encontros, dependendo do caso, tínhamos alta.

– Volta daqui a uns seis meses, ok? – E eu voltava, sempre.

E a Neli tinha preços diferenciados. Na primeira consulta que tive com ela, me fez uma série de perguntas, quando descobriu coisas relevantes como o time de futebol para o qual eu torcia e o quanto ganhava por mês, entre outros dados. Dependendo da renda e outras informações relacionadas de classificação nos estratos sociais, ela cobrava um ou outro valor. A coisa era simples: os mais pobres pagavam menos; os mais ricos, mais. E ponto final. Não é improvável que o time de futebol tivesse também peso nessa classificação socioeconômica.

– Quer saber como eu acabei torcendo para o Grêmio? – me perguntou um dia.

– Hum...

(Os dentistas nem sempre se lembram de que não temos como responder-lhes senão, e muito modestamente, sim ou não.)

– Eu nunca dei bola pra futebol – continuou. – Mas tinha um namoradinho, de quem gostava bastante, que adorava esse esporte. Um dia ele me perguntou se eu era gremista ou colorada, e eu lhe respondi com outra pergunta, na verdade a mesma. Ele me respondeu que era colorado, claro! “Então eu sou gremista”, eu disse. E desde então sou gremista.

Me veio uma vontade louca de dar uma gargalhada, mas não pude, não tinha como. Que merda! Ela riu bastante por nós dois.

Essa era a Neli.

Mas voltemos ao dente 26. Consegui, depois de haverem desmarcado duas vezes, que retirassem a coisa provisória que o endodontista havia colado ali depois do canal e fechassem adequadamente o tal dente. Um alívio!

Enquanto se preparava para iniciar o trabalho, o dentista comentou (já não sei por que cargas d’água) que ia com frequência ao presídio, fazer implantes e branqueamentos nos presos.

– Devem ser presos com dinheiro – observei, porque, o procedimento não tendo ainda começado, era possível ainda dizer mais do que apenas “hum” (= sim) ou “hum.. hum” (= não). E perguntei:

– São assaltantes de bancos?

– Traficantes, acho – respondeu o dentista. – O branqueamento é a primeira coisa que querem, mas também faço muitos implantes. Ter belos dentes é uma questão de status no presídio.

– É mesmo?

– Ah é, sim!

– O Brasil já foi o país dos desdentados, não é? – falei, sem saber mais que dizer e pensando que talvez isso fosse a última coisa antes dos iminentes sim e não.

– Ainda é, embora talvez menos que antes – ele disse.

– E os dentistas têm sua dose de culpa nisso, não é verdade? – provoquei, enquanto ele já me pedia para abrir a boca. Na verdade, pelo seu olhar, o que talvez ele neste momento desejasse mesmo era que eu a fechasse.

Houve um silêncio. Eu agora já não podia dizer mais senão “hum” e “hum... hum”, que só servem apropriadamente para resposta, ao passo que ele, que podia falar quanto quisesse, guardou um silêncio pensativo.

Depois de certo tempo, disse:

– A responsabilidade é antes do poder público. Se houvesse serviço de odontologia disponível e de qualidade para a população, deixaríamos de ser “o país dos desdentados”.

A conversa morreu ali. Os pensamentos sobre o assunto, no entanto, seguiram. Os meus certamente, mas tenho pra mim que assim também os dele.

Esse dentista que me atendia era com certeza um homem bem-sucedido. Não tenho por que duvidar de sua competência e de que o sucesso evidente naquele centro odontológico bem equipado era fruto de trabalho sério e dedicado. Contudo, fiquei a pensar no papel social dos profissionais liberais e de como todos nós sempre atiramos no colo do poder público tudo quanto nos vêm cobrar de não estarmos fazendo. É evidente que, porque pagam seus impostos (os quais não serão decerto poucos), esses profissionais entendem, talvez não sem razão, que já estão fazendo a sua parte e de modo algum indo contra o juramento republicano que na formatura tão solenemente fizeram.

Ainda assim, me incomodou o fato de ele ir ao presídio atender aos traficantes. Num certo sentido, talvez forçando a barra um bocado, admito, podia mesmo dizer-se que trabalhava para eles, não? De onde aqueles presos tiravam o dinheiro grosso para dar-se ao luxo de fazer implantes e branqueamentos senão da miséria alheia? Teria esse mesmo dentista o cuidado em atender presos despossuídos de poder econômico, disponibilizando parte de seu tempo semanal ou até mensal para, não digo fazer tratamentos caros, mas ao menos alguma obturação ou mesmo extração, aliviando o sofrimento daquelas criaturas encarceradas? São presos, claro, e, se ali estão, algo de errado, de criminoso, supostamente fizeram, certo? Mas também os outros, os ricos do presídio, não estão ali certamente por algum prêmio. A diferença é o poder econômico de uns contra outros, não é?

Mas dos desvalidos cuide o poder público. Um profissional liberal bem-sucedido já dá sua cota de contribuição ao pagar seus impostos, correto?

Já na sala de recepção, enquanto estendia o cartão de crédito para pagar o tratamento recebido, a secretária sorridente me pergunta:

– O senhor vai precisar de recibo para o imposto de renda?

A pergunta fazia sentido e em nada a princípio desabonava a clínica e seu proprietário, evidentemente. Afinal, podia dar-se bem o caso de minha renda anual estar abaixo do valor a partir do qual se paga imposto, não havendo, portanto, necessidade alguma de minha parte que me dessem um recibo para o imposto de renda, pois não haveria necessidade nem lugar para pedido de restituição.

Enquanto acendia o cigarro, em direção ao carro, com o recibo na mão, não pude deixar de perguntar a mim mesmo se não era obrigação de todo prestador de serviço dar o recibo para o imposto de renda, houvesse ou não necessidade do documento. Pois é, pensei, talvez o recibo não fosse mesmo preciso nesses casos, e eu é que estava de má disposição contra o dentista. Aquela história dos presos, do poder público, de eu ter de voltar para que me fechassem o dente depois de duas tentativas frustradas, tudo aquilo me deixara certamente de mal humor.

De uma coisa, no entanto, tenho plena certeza: os traficantes do presídio, esses não pedem recibo algum. Ou pedirão?