Este texto foi escrito ao som de “Faraway eyes”, canção do álbum SOME GIRLS (1978), dos Rolling Stones. Dedico-o ao Prof. Antônio por corajosa e generosamente aceitar ser candidato a Diretor do Campus Charqueadas do IFSul.
Uma escola é (ou deveria ser) um espaço integral de aprendizagem, certo? Todavia, o que vemos no mais das vezes é antes uma “cidade fantasma”. Onde estão os alunos quando não é o período de intervalo, o famoso “recreio”? Você olha de fora dos muros lá para dentro e não vê quase ninguém. Você entra na escola, então, e anda pelo pátio e corredores, mas serão poucos os alunos, os professores e demais trabalhadores da educação por ali. Pais, mães, avós, esses muito raramente lá estarão (nem em reuniões destinadas exclusivamente à integração de pais e professores vemos número expressivo de pais na escola). Tampouco na biblioteca (quando esta existe!) você encontrará alguém na maior parte do tempo. E quando aí houver alguém, será o silêncio a imperar. Afinal, na biblioteca, nos dizem sempre, não pode haver barulho! Portanto, sssssssh! Com exceção talvez dos professores e alunos em aula de Educação Física, tão somente um ou outro aluno andará pelo corredor a caminho do banheiro ou atendendo uma incumbência qualquer que lhe tenha dado o professor, mas sempre, claro, sob cerrada supervisão.
- Que fazes aqui, garoto, que não estás em aula?
- Tô indo no banheiro, 'sora!
- Mostra o cartão de autorização!
- Xi! Misqueci!
- Volta pra aula, JÁ!
E o rapaz é reconduzido à sala de aula. Mas o que, afinal, é uma sala de aula?
De todos os espaços da escola (possivelmente com a única exceção do péssimo estado da “quadra de esportes”, quando, de novo, esta existe), é a sala de aula decerto o pior! E, sendo o pior, é não obstante aquele em que se acredita normalmente dever par excellence dar-se o propalado processo de ensino e aprendizagem!
Quando eu era menino, lá nos anos 70, formávamos fila à moda militar, estendendo o braço à frente e para o lado (só não prestávamos continência...), e a seguir íamos assim em fila rumo à sala de aula. Lá ficávamos até soar a sineta da hora do recreio. Ao término deste, voltávamos a formar fila, agora à frente da porta da sala de aula, e desta só saíamos quando de novo a sineta tocava. Era então hora de ir pra casa, ufa!
Mas então o mundo era assim, e não havia outro. Pelo menos, eu naquela época não era capaz de conceber que houvesse outro possível. Quarenta anos se passaram, e eu ainda me encontro na escola, agora por opção. E a escola segue “priorizando” a sala de aula! E, estranhamente, segue esse espaço sendo sempre o pior (donde, leitor arguto, as aspas no ambíguo verbo “priorizar”).
Detenhamo-nos, porém, um momento a considerar as características de nossas salas de aula. São impessoais: não pertencem a ninguém. Talvez uma dada sala “pertença” à turma que ali se encontra naquele turno ou, sendo a escola de dois ou três turnos, às turmas que dividem aquele mesmo espaço ao longo do dia letivo. Será essa sala, ainda assim, sempre impessoal, pois, a não ser por um ou outro trabalho ou cartaz que se lhe afixe às paredes, nenhum dos alunos deixará ali ou, muito menos, terá ali, senão na hora da aula, os seus pertences (o que faz com que deva carregar pesada mochila todos os dias). São frias, senão gélidas, no inverno e horrivelmente quentes no verão, com, quando muito, um ou dois barulhentos ventiladores, se estes funcionarem. As classes e as cadeiras, sobretudo estas, são normalmente muito desconfortáveis. Aliás, não será acaso isso que, a seu modo, queiram nos dizer aqueles alunos que, a despeito do que lhes digamos sobre conservação de “patrimônio” (público ou outro), insistem em riscá-las, nelas colar chicletes mascados, ou eventualmente até quebrá-las? E o que dizer de jovens que, já naturalmente pouco inclinados a estar sentados, devem ainda fazê-lo em móveis tão desconfortáveis!?
E já que falamos em móveis, vejamos sua disposição. Estive em muitas escolas, em inúmeras salas de aula de diferentes níveis de ensino, e posso dizer que a disposição “olho na nuca” é o infeliz padrão. Não digo que o modelo “auditório” não sirva. Longe disso! Mas serão todas as aulas assim? No Campus Charqueadas do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul), por exemplo, temos um espaço dito multidisciplinar em que contamos com cerca de cinco mesas redondas para cinco ou seis alunos em cada uma. É notável o interesse que demonstram os alunos em trabalhar ali. Tenho usado bastante essa sala e, quando por uma razão ou outra não o faço, meus alunos reclamam. É evidente sua preferência por aquela disposição. Infelizmente, fora, é claro, os laboratórios (que atendem uma funcionalidade específica), é esse espaço a exceção, sendo as salas de aula do tipo “olho na nuca”, de novo, a triste regra. (Posso ouvir alguém dizendo: “Mas cabe ao professor simplesmente alterar a disposição dos móveis, adaptando-os à finalidade que queira!” Claro, claro. E isso muitas vezes é o que de fato fazemos. Mas ainda assim é a ordenação espacial default um indício bastante eloquente do que se crê deva ocorrer num dado ambiente, ou não?)
A insistência que vemos em nossos alunos de querer sair da sala de aula a todo momento terá decerto muitas razões, mas uma destas dever-se-á com certeza às características negativas desse espaço apontadas acima. Não creio que numa escola deva ser a sala de aula o único espaço de aprendizagem, mas, se queremos efetivamente priorizá-la, devemos fazê-lo em todos os sentidos dessa palavra, tornando-a um lugar confortável, agradável, um local onde se queira estar e para onde se queira ir, não lhes parece?
Agora, pensemos no professor. Lá vem ele ou ela feito um homem-aranha trazendo, nas cinco ou seis mãos que terá de ter, e livros, e giz ou canetas-marcadores, e, muitas vezes, CD-player, e mapas, e dicionários, etc., etc. E assim arfando dirige-se a um lugar que não é nem nunca será seu! Ora, se os alunos, que ocupam aquele espaço um turno inteiro, não se sentem “em casa” na “sua” sala de aula, o que dizer do professor, que, como um periquito assoleado, passa o dia a pular de galho em galho? Na verdade, está o homem aí ainda pior do que o bicho, porque este não carrega senão de vez em quando alguns raminhos no bico, enquanto o professor, já dissemos, leva o mundo! Que dificuldade é esta que temos de organizar os espaços, de fazê-los conter em si os apetrechos que diariamente ali devem ser usados, espaços que não se destinam senão àquele fim específico e único, mas que desgraçadamente devem todos os dias ser aparelhados de novo e de novo como uma tela de Penélope que nunca acaba de estar pronta!?
E é esta sala de aula, senhoras e senhores, precisamente o local em que toda a obra educacional deve verificar-se!
E lhes pergunto ainda: não haveria na escola outros espaços em que também pudéssemos trabalhar, onde o aprendizado igualmente se verificasse? Já vi, na minha Escola e em outras, excelentes iniciativas, em que professores, por exemplo, levam seus alunos para o pátio, seja à sombra ou ao sol, e ali mesmo, à moda dos sábios educadores de outros tempos, fazem acontecer as suas aulas. Já vi também desenvolverem-se atividades na biblioteca, que por um momento deixa de ser um espaço do silêncio e ganha vida, seja porque alguém lê um texto ou narra uma história, seja porque se entende que circular por seus corredores e estantes, folheando livros e revistas ao acaso, valerá naquele dia específico bem mais que uma preleção sobre não sei que assunto. (Surpreendia-me sempre quando um aluno, já no final do ano letivo, vinha dizer-me que nunca havia posto os pés na biblioteca. Hoje sei mais: entendo que a culpa, se culpa há, será menos deste aluno de pouca iniciativa do que do próprio modus operandi de nossas escolas, com sua atenção quase exclusiva à sala de aula.) E podia seguir nomeando tais iniciativas, que felizmente sempre as há. Contudo, tudo que ocorre fora da sala de aula, se quiser valer "oficialmente" alguma coisa, demandará, no mais das vezes, procedimentos burocráticos que, não digo que não tenham lá sua razão de ser, mas que ao fim e ao cabo desestimulam a iniciativa, favorecendo, isso sim, uma atuação de “professor-relógio-ponto”. Ora, se queremos uma escola de espaço integral, que aguardem os papeis e os formulários! Façamos antes, que haverá sempre tempo, depois, de registrarem-se essas atividades!
Agrada-me pensar que minha concepção de educação talvez se ajuste àquela que o Prof. Samir tão a propósito refere em seu comentário ao texto da última semana, a saber, a de uma “educação progressista”, que se posiciona como “geradora de inquietação”, como “oposição e resistência a uma ordem relativamente consolidada”. Portanto, se de fato a escola (tanto nosso Campus como qualquer outra escola) quer, já não direi “mudar o mundo”, mas ao menos apresentar-se como uma aliada nessa mudança, deverá antes e sempre transformar-se a si mesma, e será, me parece, a transformação espacial um passo certo nessa direção, quem sabe o primeiro e mais efetivo passo.
E essa transformação, essa mudança, creio eu, não deve dar-se unicamente na disposição espacial da sala de aula (que, como vimos, requer que seja feita e já!), senão igualmente no rearranjamento, na reacomodação de toda a escola, porque, ainda que reordenemos o espaço interno da sala de aula, é sempre possível que nossos alunos continuem a olhar pela porta aberta e pelas janelas com olhos distantes (faraway eyes).
quando eu dava aulas de economia (que digo?, era dificílimo dar aulas, pois havia milhares de obstáculos), percebendo a apatia da maior parte dos alunos de todas as turmas em todos os semestrse, achava que era necessária uma mudança na composição das turmas e na natureza do ensino. no primeiro caso, sempre imaginei que um bom professor deveria ter no máximo seis ou oito alunos sob sua tutela. para isto, claro, seria necessário contratar mais professores. contrapondo-se a este estilo artesanal, haveria aulas de auditório (portanto, não participatórias) para 200-300 pessoas e até mais. e ainda haveria um terceiro time, com professores participando de ateliês em que seriam discutidos trabalhos práticos, inclusive o afamado trabalho de conclusão de curso.
ResponderExcluirnunca pensara que este tipo de coisa poderia, como vejo nesta maravilhosa postagem, passar ao reino da realidade.
DdAB
p.s. sabes o que é o Modelo ABC?
Dondo:
ResponderExcluirTu que estudaste em Oxford, queria saber de ti se naquela prestigiosa instituição não há isto de auditórios com, sei lá, 200 alunos ao lado de "tutorials" para 10 ou 12. Soube que em Leiden, na Holanda, isso funcionava assim.
Não, não sei o que seja o Modelo ABC. Podes esclarecer-nos?
Abraço,
Conrado
Olá,
ResponderExcluirAgradecemos por disponibilizar esse belo texto no blog 'Nós queremos'.
Obrigado e abraço.
Excelente! Quero aproveitar para desabafar: a escola onde trabalho se localiza no interior de um dos municípios mais ricos do RS. O lugar é até agradável, rodeado de campos, plantações, criações e pomares. Muito tranquilo. A escola, porém, possui salas “gélidas”. O prédio, que fora reformado há alguns anos, tem salas de aula com piso frio, forro de PVC, porta e janelas de ferro. Além disso, os corredores são abertos e não há quadra de esportes. A sala de informática é fechada às sete chaves, não por medida de segurança, mas porque os professores (a maioria) que não possuem uma qualificação muito específica (o PROINFO) não podem usá-la. Além disso, a escola não possui internet (nem telefone!). Ora, atualmente os professores sabem muito o que fazer com seus alunos se tiverem a sua disposição um determinado número de computadores conectados sem necessariamente frequentar um PROINFO! Bem, sempre se pode dizer que tudo isso custa caro. Lembremos: trata-se de um dos municípios MAIS RICOS DO RS!
ResponderExcluirQuanto aos meus equipamentos, conto com a boa vontade de meus alunos em buscar cada coisa que preciso (CD player, mapa, giz, dicionário, etc.) Eles adoram. Afinal é o momento que aproveitam para dar uma voltinha...
digo à Janaína: quando a gente começa a pensar o que é que faria mesmo uma educação responsável pela mudança e os recursos necessários, então se torna mais ridicula aquela visão de alguns colegas esquerdistas (mas não-igualitaristas) que querem porque querem politica industrial, ou seja, mais Petrobrás, e é óbvio que isto significa menos escolas pré-universitárias, mais criança com barriga dágua, e mais crime nas ruas e nas casas.
ResponderExcluirdigo ao Conrado: parece-me que o padrão anglo-americano é a coexistência de turmas de diferentes tamanhos. vai-se do tutorial com cinco ou seis alunos presentes na sala do professor tutor a 200 ou 300 no grande auditório do Instituto de Economia e Estatística (ou seja, fala um economista). o que é pecular - e me remete ao Modelo ABC - é a dissociação absoluta entre estas três equipes:
A: dá a aula em qualquer dessas escalas, do tutorial às grandes conferências
B: faz a prova
C: corrige a prova.
Não há mais aquela pergunta para o tutor: "cai na prova, professor?". Nem há pactos de mediocridade: o professor tem que ensinar o que é realmente importante, pois não sabe o que cairá na prova nem como os avaliadores (que não fizeram a prova) lidarão com as respostas dos alunos de suas lectures.
DdAB