LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

MACHADO E THERESA CHRISTINA


O senhor, a senhora aí assiste às novelas brasileiras na TV, pelo menos a das nove? A maioria de nós brasileiros o fazemos, mas de modo algo distinto, e disso gostaria de tratar hoje.

Num grupo de alunos em curso livre de “Português para Concursos”, comentava recentemente sobre a reordenação pronominal do português atual, a que se referem alguns autores como “mistura de pronomes”. O que é isso? Vejamos dois exemplos.

Em comercial não muito antigo da Caixa Econômica Federal, dizia-se: “Vem pra Caixa você também. Vem!”. Igualmente, noutro comercial, este do Governo Federal, lia-se: “Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”.

Em ambos esses exemplos, temos “a mistura”, como escreveram Faraco e Tezza, de duas “tribos”: a tribo do “tu” e a tribo do “você”. O imperativo “vem” pertence à tribo do “tu”. Para aquela de “você” teríamos “venha”. O resultado, então, seria: “Venha pra Caixa você também. Venha!”, o que, além de soar estranho a nossos ouvidos atuais, teria também o inconveniente de deixar de fora a rima em “em”. No segundo exemplo, “te” não pertencendo à tribo de “você” deveria ser substituído. Mas pelo quê? Que tal “Se você não se cuidar, a AIDS vai pegar você!”, ou “...vai pegá-lo”? Que lhes parece? Nada bom, não é? Sem contar que, de novo, se perde uma rima em “ar” ou “á”.

Mas onde entra a novela nisso tudo? Acontece que o professor aqui falava a seus alunos dessa característica do português (que, aliás, não é exclusiva do português, senão de toda língua viva: o inglês por exemplo, além de perder o antigo pronome singular de segunda pessoa “thou”, passou a usar o plural de segunda pessoa “you” também para o singular, de modo que atualmente “you” será “você/tu” ou “vocês”), e num dado momento chegamos à novela, mais especificamente aos personagens Teresa Cristina (ou será Theresa Christina?) e o português dono da lanchonete cujo nome agora me escapa. Dizia-lhes que a socialaite misturava as tribos “tu” e “você”, usando “te” e “contigo”, enquanto o português, seguindo o uso de sua variante, acrescentava às tribos de “você” e “vocês” o elemento “vosso”, que pertence originariamente à extinta tribo do “vós”. Mas não criticava esses usos; pelo contrário, usava a novela como exemplo de como de fato os pronomes estão se reorganizando em nosso idioma, e que esse fenômeno vinha se dando na língua portuguesa há já muito tempo.

Não quero aqui entrar em mais detalhes sobre o sistema pronominal do português e suas alterações, passadas e presentes. Baste que o leitor entenda que a questão do reordenamento pronominal nos conduziu à novela das nove, onde, porque ali se fala o português atual, vivo e possante, dispomos de boa fonte de consulta. Mas, quando lhes falava desses personagens, e vendo que se calavam, quis saber se de fato assistiam à novela. Nem 10% admitiu que o fizesse. Desconfiei. A maioria daqueles alunos eram mulheres, e essas geralmente admitem sem problemas que assistem às telenovelas, ao contrário dos homens, que, embora o façam, tendem a ser mais relutantes em dizê-lo. Achei aquilo estranho. Quase todos os alunos eram ou graduados ou já estudantes universitários, todos a preparar-se para concursos. Que estaria havendo?

A seguir, já não me recorda por que cargas dágua, veio à baila um conto do Machado de Assis, “A Cartomante”. Quis saber se já o haviam lido, e agora talvez 90% afirmou que sim. Perguntei então se “ele” (referia-me ao personagem principal) morria ou não no final, e ninguém soube me dizer! Não se lembravam, me disseram alguns. Não se lembravam!

Estamos assim: quase ninguém assiste à novela das nove, enquanto quase todos leem Machado de Assis! Será?

Aqui chego ao ponto ao qual queria chegar desde o início: nos envergonhamos das coisas populares, embora nos agradem, por isso custamos a admitir que as façamos ou, no caso, a elas assistamos, enquanto, por aquelas coisas ditas “cultas” ou “cult” (Machado seria “cult”), não dispensamos grande apreço, ainda que, socialmente, relutemos em admitir isso, preferindo antes esconder a verdade a fazer papel de “ignorante”. (Grande coisa ser “ignorante”, desconhecer as coisas; o pior é não querer conhecê-las -- isso já será estupidez.)

Lamento que nosso povo não conheça autores do calibre de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, e por aí vai. Mas não creio que devamos fazer cara feia às coisas populares, como certamente o são as telenovelas. Todos odiavam o sertanejo (“sertanojo”), mas, quando saiu o filme “Dois filhos de Francisco”, muita gente (inclusive eu) mudou de ideia. Gilberto Gil, compositor fundamental da MPB, já disse que o “pagode” é onde o samba permanece vivo e vendendo, e quantos de nós já não nos orgulhamos do samba, hein? E assim também o “hip-hop” e o “funk”: se ainda não nos orgulhamos dessas manifestações dos bairros pobres de nossas grandes cidades, será sempre preciso respeitá-las.

Não quero me alongar muito sobre esse assunto hoje (até porque, infelizmente, não disponho de muito tempo), mas gostaria de dizer, ainda, que a ideia de cultura mais atraente será para mim aquela que inclui. Não vejo choque, contradição ou qualquer outro descompasso entre telenovelas e Machado. E digo mais: aceitarmos as telenovelas será possivelmente a condição para que se passe a aceitar Machado, até porque a aceitação de Machado se tem dado a maior parte do tempo apenas da boca pra fora, pois quem de fato conhece esse autor? Digo conhece mesmo, e não apenas leu um ou outro conto, ou um ou outro romance, que caiam em prova ou no vestibular. Ah, mas a língua é difícil! Ora, quem diz que Machado é difícil, é empolado, já está a admitir (olha o portuga aí) que não o conhece.

Enquanto isso, seguimos assistindo às novelas escondidos...

4 comentários:

  1. Pior que não admitir assistir novelas e jurar conhecer literatura é o preconceito que está por trás disso!

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  2. de minha parte, comento -aprendi com o blogueiro himself- que no Brasil fala-se "português brasileiro". já ouvira de descendentes de colonos alemães a referência ao "brasileiro", como sendo a língua que ouviam nas interações com os brasileiros. vim a criar a hipótese de que não falamos "brasileiro" e sim "português", pois é mais chic falar uma língua europeia (e estes acentos que mudam...).

    e por falar em pronome, a língua falada em Portugal (ouvi in loco e leio em pelo menos um autor português) fala em "consigo": falei consigo, o que no "brasileiro" deve ser substituído por "falei com você". um troço destes.
    DdAB

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  3. De fato, Dondo, não faz sentido falarmos em "brasileiro" ao nos referirmos ao idioma oficial usado aqui no Brasil. O que temos é sempre o português, ainda que com características bastante distintas do português europeu. Por isso, dizemos "português brasileiro" quando buscamos algum grau de precisão. Um idioma pode comportar variantes e ainda sempre ser um só. Mais: não parece haver idiomas homogêneos. É a variação característica essencial de toda língua natural.

    Teríamos outra língua se, em lugar do português, houvéssemos investido na chamada "língua geral", que até meados do século XVIII se usava na costa brasileira.

    Já a ortografia é toda outra história. Ainda brigamos por questões ortográficas, ao passo que nossos "hermanos", cuja língua se espalha por espaço bem mais amplo, escrevem respeitando sempre as mesmas regras, e tudo isso sempre a permitir que as cores locais se mostrem.

    "Soy loco por ti, America"

    Abraço!

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