O senhor, a senhora aí
assiste às novelas brasileiras na TV, pelo menos a das nove? A
maioria de nós brasileiros o fazemos, mas de modo algo distinto, e
disso gostaria de tratar hoje.
Num grupo de alunos em
curso livre de “Português para Concursos”, comentava
recentemente sobre a reordenação pronominal do português atual, a
que se referem alguns autores como “mistura de pronomes”. O que é
isso? Vejamos dois exemplos.
Em comercial não muito
antigo da Caixa Econômica Federal, dizia-se: “Vem pra Caixa você
também. Vem!”. Igualmente, noutro comercial, este do Governo
Federal, lia-se: “Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”.
Em ambos esses
exemplos, temos “a mistura”, como escreveram Faraco e Tezza, de
duas “tribos”: a tribo do “tu” e a tribo do “você”. O
imperativo “vem” pertence à tribo do “tu”. Para aquela de
“você” teríamos “venha”. O resultado, então, seria: “Venha
pra Caixa você também. Venha!”, o que, além de soar estranho a
nossos ouvidos atuais, teria também o inconveniente de deixar de
fora a rima em “em”. No segundo exemplo, “te” não
pertencendo à tribo de “você” deveria ser substituído. Mas
pelo quê? Que tal “Se você não se cuidar, a AIDS vai pegar
você!”, ou “...vai pegá-lo”? Que lhes parece? Nada bom, não
é? Sem contar que, de novo, se perde uma rima em “ar” ou “á”.
Mas onde entra a novela
nisso tudo? Acontece que o professor aqui falava a seus alunos dessa
característica do português (que, aliás, não é exclusiva do
português, senão de toda língua viva: o inglês por exemplo, além
de perder o antigo pronome singular de segunda pessoa “thou”,
passou a usar o plural de segunda pessoa “you” também para o
singular, de modo que atualmente “you” será “você/tu” ou
“vocês”), e num dado momento chegamos à novela, mais
especificamente aos personagens Teresa Cristina (ou será Theresa
Christina?) e o português dono da lanchonete cujo nome agora me
escapa. Dizia-lhes que a socialaite misturava as tribos “tu” e
“você”, usando “te” e “contigo”, enquanto o português,
seguindo o uso de sua variante, acrescentava às tribos de “você”
e “vocês” o elemento “vosso”, que pertence originariamente à
extinta tribo do “vós”. Mas não criticava esses usos; pelo
contrário, usava a novela como exemplo de como de fato os pronomes
estão se reorganizando em nosso idioma, e que esse fenômeno vinha
se dando na língua portuguesa há já muito tempo.
Não quero aqui entrar
em mais detalhes sobre o sistema pronominal do português e suas
alterações, passadas e presentes. Baste que o leitor entenda que a
questão do reordenamento pronominal nos conduziu à novela das nove,
onde, porque ali se fala o português atual, vivo e possante,
dispomos de boa fonte de consulta. Mas, quando lhes falava desses
personagens, e vendo que se calavam, quis saber se de fato assistiam
à novela. Nem 10% admitiu que o fizesse. Desconfiei. A maioria
daqueles alunos eram mulheres, e essas geralmente admitem sem
problemas que assistem às telenovelas, ao contrário dos homens,
que, embora o façam, tendem a ser mais relutantes em dizê-lo. Achei
aquilo estranho. Quase todos os alunos eram ou graduados ou já
estudantes universitários, todos a preparar-se para concursos. Que
estaria havendo?
A seguir, já não me
recorda por que cargas dágua, veio à baila um conto do Machado de
Assis, “A Cartomante”. Quis saber se já o haviam lido, e agora
talvez 90% afirmou que sim. Perguntei então se “ele” (referia-me
ao personagem principal) morria ou não no final, e ninguém soube me
dizer! Não se lembravam, me disseram alguns. Não se lembravam!
Estamos assim: quase
ninguém assiste à novela das nove, enquanto quase todos leem
Machado de Assis! Será?
Aqui chego ao ponto ao
qual queria chegar desde o início: nos envergonhamos das coisas
populares, embora nos agradem, por isso custamos a admitir que as
façamos ou, no caso, a elas assistamos, enquanto, por aquelas coisas
ditas “cultas” ou “cult” (Machado seria “cult”), não
dispensamos grande apreço, ainda que, socialmente, relutemos em
admitir isso, preferindo antes esconder a verdade a fazer papel de
“ignorante”. (Grande coisa ser “ignorante”, desconhecer as
coisas; o pior é não querer conhecê-las -- isso já será
estupidez.)
Lamento que nosso povo
não conheça autores do calibre de Machado de Assis, Graciliano
Ramos, Fernando Pessoa, e por aí vai. Mas não creio que devamos
fazer cara feia às coisas populares, como certamente o são as
telenovelas. Todos odiavam o sertanejo (“sertanojo”), mas, quando
saiu o filme “Dois filhos de Francisco”, muita gente (inclusive
eu) mudou de ideia. Gilberto Gil, compositor fundamental da
MPB, já disse que o “pagode” é onde o samba permanece vivo e
vendendo, e quantos de nós já não nos orgulhamos do samba, hein? E
assim também o “hip-hop” e o “funk”: se ainda não nos
orgulhamos dessas manifestações dos bairros pobres de nossas
grandes cidades, será sempre preciso respeitá-las.
Não quero me alongar
muito sobre esse assunto hoje (até porque, infelizmente, não
disponho de muito tempo), mas gostaria de dizer, ainda, que a ideia
de cultura mais atraente será para mim aquela que inclui. Não vejo
choque, contradição ou qualquer outro descompasso entre telenovelas
e Machado. E digo mais: aceitarmos as telenovelas será possivelmente
a condição para que se passe a aceitar Machado, até porque a
aceitação de Machado se tem dado a maior parte do tempo apenas da
boca pra fora, pois quem de fato conhece esse autor? Digo conhece
mesmo, e não apenas leu um ou outro conto, ou um ou outro romance,
que caiam em prova ou no vestibular. Ah, mas a língua é difícil!
Ora, quem diz que Machado é difícil, é empolado, já está a
admitir (olha o portuga aí) que não o conhece.
Enquanto isso, seguimos
assistindo às novelas escondidos...
Pior que não admitir assistir novelas e jurar conhecer literatura é o preconceito que está por trás disso!
ResponderExcluirde minha parte, comento -aprendi com o blogueiro himself- que no Brasil fala-se "português brasileiro". já ouvira de descendentes de colonos alemães a referência ao "brasileiro", como sendo a língua que ouviam nas interações com os brasileiros. vim a criar a hipótese de que não falamos "brasileiro" e sim "português", pois é mais chic falar uma língua europeia (e estes acentos que mudam...).
ResponderExcluire por falar em pronome, a língua falada em Portugal (ouvi in loco e leio em pelo menos um autor português) fala em "consigo": falei consigo, o que no "brasileiro" deve ser substituído por "falei com você". um troço destes.
DdAB
De fato, Dondo, não faz sentido falarmos em "brasileiro" ao nos referirmos ao idioma oficial usado aqui no Brasil. O que temos é sempre o português, ainda que com características bastante distintas do português europeu. Por isso, dizemos "português brasileiro" quando buscamos algum grau de precisão. Um idioma pode comportar variantes e ainda sempre ser um só. Mais: não parece haver idiomas homogêneos. É a variação característica essencial de toda língua natural.
ResponderExcluirTeríamos outra língua se, em lugar do português, houvéssemos investido na chamada "língua geral", que até meados do século XVIII se usava na costa brasileira.
Já a ortografia é toda outra história. Ainda brigamos por questões ortográficas, ao passo que nossos "hermanos", cuja língua se espalha por espaço bem mais amplo, escrevem respeitando sempre as mesmas regras, e tudo isso sempre a permitir que as cores locais se mostrem.
"Soy loco por ti, America"
Abraço!
Ótimo!
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