Sempre dei
valor a destinos grandiosos. Na escola, gostava muitíssimo quando me
contavam a história de homens e mulheres que haviam realizado
grandes feitos, fossem eles ou elas cientistas, artistas,
desportistas, líderes políticos ou religiosos. Santos Dumont, Villa
Lobos, Pelé, Tiradentes, São Francisco de Assis, por exemplo, eram
pessoas cujas vidas para mim tinham uma razão efetiva de ser. Não
digo que me desinteressasse o comum dos mortais, mas a verdade é que
vinham as demais pessoas sempre em segundo plano. Assim, quando
projetava meu próprio futuro, é natural que me visse sempre como um
cientista, um artista, um atleta, um mártir político ou um santo.
Não queria saber doutra coisa. Queria era ombrar com os grandes
destinos, igualar-me a eles, ter uma vida que tivesse ao fim valido a
pena.
É preciso
dizer que era um menino passavelmente bem informado; pelo menos para
a época, anos 70, quando, além da escola, pouco havia em que
pudéssemos nos apoiar. Para remediar isso, com paciência e
organização beneditinas, minha mãe foi comprando em fascículos
semanais, até completar e mandar encadernar, a enciclopédia Novo
Conhecer, editada pela Abril. Era costureira, e entre suas freguesas
achavam-se pessoas instruídas, das quais soube a boa mulher tirar
informações valiosas para a educação do filho. Estava ali,
naquela enciclopédia, o meu Google!
É bem
provável que por algum tempo eu tenha acreditado que a mesma
percepção de um destino especial e elevado fosse já um indício de
quão especial e particular devesse tornar-se o meu próprio destino.
Vivi, portanto, nessa ilusão alguns bons anos da minha juventude,
até perceber que também meus amigos e colegas tinham lá com eles
ideias ou ideais similares. É de se supor que fantasias assim façam
parte do ideário dos mais jovens, ao menos quando estes tenham
alguma informação, e isso terá possivelmente uma razão de ser.
Não será decerto o adulto de meia idade quem vai encontrar em si o
impulso para grandes feitos e projetos. Este já estará encaixado em
alguma atividade que lhe garanta, ainda que minimamente, a
existência, e ficar saltando de um galho a outro é coisa de
passarinhos e macacos, não de homens! Serão, portanto, os jovens,
salvo as exceções do costume, os acendrados idealizadores de
destinos grandiosos, que como podem vão perseguindo bem ou mal, até
que esses invariavelmente ou não se realizem, ou o façam de modo
muito distinto daquele inicialmente projetado. Terá sido Yourcenar
quem disse fazer todo homem uma grande aposta consigo mesmo, a qual,
no fim, sempre perde.
Ora, quero
crer que a frustração de um grande destino, senão o engodo de se
apostar nele, seja um problema social, especificamente educacional,
de preferência a um qualquer desvio individual ou psíquico. Todo
jovem minimamente informado, todo jovem que, digamos, tenha entrado
na escola terá de dar-se logo conta de que o conhecimento humano se
organiza em áreas como religião (moral), ciência (natural e
humana), arte (onde podemos sempre incluir a literatura), desporto,
etc., a chave para entrar nesse
mundo sendo, em primeiro lugar, a linguagem, sobretudo a escrita, e,
modernamente, também um passável domínio dos dispositivos de
circulação da informação (físicos e virtuais). Será preciso que
compreenda que as atividades legais, sobretudo aquelas que dão suporte
ao trabalho real, se baseiam todas naquelas áreas.
Numa
sociedade sadia, nenhuma atividade, por mais elementar que seja,
devia deixar de perceber-se como integralmente conectada às grandes
realizações do engenho humano. Se o que realizo não tem outra
justificativa que minha única subsistência, como se diferenciará
então o crime do trabalho legal? O que realizo me dá a subsistência
(e não deveria haver a princípio subsistência que não se
fundamentasse no trabalho real), mas essa subsistência será antes
uma consequência necessária de um empreendimento maior e útil à
própria existência humana. Além disso, não havendo vida sem trabalho e sendo a
escola, como se quer, a porta de entrada ao trabalho, é nela que
deveria, portanto, verificar-se a escolha, mas não haverá escolha
alguma sem que se conheçam as opções.
A
ideia do destino grandioso está intimamente ligada à noção de
gênio. Mas o que será o gênio? Dir-se-á que gênio é quem
apresenta qualidades altíssimas de realização para determina
atividade e o faz “ainda que contra si se verifiquem dificuldades
enormes”, alguém, enfim, que, apesar de tudo, realiza algo à
excelência. Ora, não direi que essa concepção seja inteiramente
falsa, porque sempre, nas atividades humanas, se veem coisas
impressionantes, mas me parece muito mais sensato imaginar o gênio
como alguém que, como se diz, estava na hora certa e no lugar certo,
tendo, evidentemente, as qualidades exatas para o empreendimento.
Mozart teve, parece, um pai obstinado e muito exigente. Poderia haver
enlouquecido ou, no mínimo, comido o velho pão que o diabo sem dó
amassou sem chegar a lugar algum, caso não possuísse as qualidades requeridas para o
empreendimento que se lhe apresentava. Mas que nada! Sua formação e
sua prática, sua vida enfim, tudo lhe serviu para que pudesse
desabrochar seu enorme talento. Steve Jobs, que abandonou o curso
universitário ainda no primeiro ano, acabou percorrendo uma
trajetória que somente depois pôde ele verificar ser a mais
adequada às atividades que veio a desempenhar e as quais tão
brilhantemente realizou. As pessoas têm talentos, tem gostos,
executam certas atividades com prazer e empenho em detrimento de
outras, e quando pode alguém ter a chance de desenvolver aquilo para
que tem qualidades efetivas, verificar-se-ão aí provavelmente as
condições mais favoráveis de emergência daquilo que chamamos
genialidade.
O
ideal seria poder a escola formar gênios, não lhes parece? A
impossibilidade de que se realize um plano assim tão ambicioso não se deverá atribuir, é
certo, unicamente à escola, e naquilo que depende exclusivamente dela será preciso que
se considerem mais detidamente os porquês de assim não poder
funcionar essa instituição. Eu diria antes que, melhor do que
formar gênios (se isso for possível), deveria ser sempre função da escola disponibilizar
conhecimentos e meios para que os talentos possam livremente exercer
suas escolhas. A ausência de tais condições, não somente na
escola, mas ainda na família e certamente na sociedade como um todo,
é o que faz com que a juventude siga apostando equivocadamente em destinos
grandiosos.
cara, bicho, gente, pessoa, indivíduo, cidadão:
ResponderExcluirbrilhante! tenho uma diferencinha: sou adepto da renda básica universal, atendendo ao conceito de sociedade justa preconizada por David Harvey. são oito itens:
1. Desigualdade intrínseca: todos têm direito ao resultado do esforço produtivo, independentemente da contribuição
2. Critério de avaliação dos bens e serviços: valorização em termos de oferta e demanda
3. Necessidade: todos têm direito a igual benefício
4. Direitos herdados: reivindicações relativas à propriedade herdada devem ser relativizadas, pois, por exemplo, o nascimento em uma família abastada pode ser atribuído apenas à sorte
5. Mérito: a remuneração associa‑se ao mérito; por exemplo, estivador e cirurgião querem maior recompensa do que ascensorista e açougueiro
6. Contribuição ao bem comum: quem mais beneficia aos outros pode clamar por mais recompensa
7. Contribuição produtiva efetiva: quem gera mais resultado ganha mais do que quem gera menos
8. Esforços e sacrifícios: quanto maior o esforço, maior a recompensa.
para mim, isto significa que há duas visões de "trabalho". uma o vê como afirmação do homem sobre a natureza (e acho que, na sociedade da abundância do futuro, será reduzido a produzir e consumir arte e esporte). e a outra o vê como uma imposição "social" pela disputa do excedente econômico. esta é datada no tempo, pois sua base de sustentação tende a desaparecer, na medida em que o progresso humano avança, redimindo-o do trabalho elementar.
mas insisto: entendo como primeira mensagem a problematização da individuação do ser humano, o que não pode acontecer por melhores meios do que a educação.
DdAB