LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

DESTINOS GRANDIOSOS

Sempre dei valor a destinos grandiosos. Na escola, gostava muitíssimo quando me contavam a história de homens e mulheres que haviam realizado grandes feitos, fossem eles ou elas cientistas, artistas, desportistas, líderes políticos ou religiosos. Santos Dumont, Villa Lobos, Pelé, Tiradentes, São Francisco de Assis, por exemplo, eram pessoas cujas vidas para mim tinham uma razão efetiva de ser. Não digo que me desinteressasse o comum dos mortais, mas a verdade é que vinham as demais pessoas sempre em segundo plano. Assim, quando projetava meu próprio futuro, é natural que me visse sempre como um cientista, um artista, um atleta, um mártir político ou um santo. Não queria saber doutra coisa. Queria era ombrar com os grandes destinos, igualar-me a eles, ter uma vida que tivesse ao fim valido a pena.

É preciso dizer que era um menino passavelmente bem informado; pelo menos para a época, anos 70, quando, além da escola, pouco havia em que pudéssemos nos apoiar. Para remediar isso, com paciência e organização beneditinas, minha mãe foi comprando em fascículos semanais, até completar e mandar encadernar, a enciclopédia Novo Conhecer, editada pela Abril. Era costureira, e entre suas freguesas achavam-se pessoas instruídas, das quais soube a boa mulher tirar informações valiosas para a educação do filho. Estava ali, naquela enciclopédia, o meu Google!

É bem provável que por algum tempo eu tenha acreditado que a mesma percepção de um destino especial e elevado fosse já um indício de quão especial e particular devesse tornar-se o meu próprio destino. Vivi, portanto, nessa ilusão alguns bons anos da minha juventude, até perceber que também meus amigos e colegas tinham lá com eles ideias ou ideais similares. É de se supor que fantasias assim façam parte do ideário dos mais jovens, ao menos quando estes tenham alguma informação, e isso terá possivelmente uma razão de ser. Não será decerto o adulto de meia idade quem vai encontrar em si o impulso para grandes feitos e projetos. Este já estará encaixado em alguma atividade que lhe garanta, ainda que minimamente, a existência, e ficar saltando de um galho a outro é coisa de passarinhos e macacos, não de homens! Serão, portanto, os jovens, salvo as exceções do costume, os acendrados idealizadores de destinos grandiosos, que como podem vão perseguindo bem ou mal, até que esses invariavelmente ou não se realizem, ou o façam de modo muito distinto daquele inicialmente projetado. Terá sido Yourcenar quem disse fazer todo homem uma grande aposta consigo mesmo, a qual, no fim, sempre perde.

Ora, quero crer que a frustração de um grande destino, senão o engodo de se apostar nele, seja um problema social, especificamente educacional, de preferência a um qualquer desvio individual ou psíquico. Todo jovem minimamente informado, todo jovem que, digamos, tenha entrado na escola terá de dar-se logo conta de que o conhecimento humano se organiza em áreas como religião (moral), ciência (natural e humana), arte (onde podemos sempre incluir a literatura), desporto, etc., a chave para entrar nesse mundo sendo, em primeiro lugar, a linguagem, sobretudo a escrita, e, modernamente, também um passável domínio dos dispositivos de circulação da informação (físicos e virtuais). Será preciso que compreenda que as atividades legais, sobretudo aquelas que dão suporte ao trabalho real, se baseiam todas naquelas áreas.

Numa sociedade sadia, nenhuma atividade, por mais elementar que seja, devia deixar de perceber-se como integralmente conectada às grandes realizações do engenho humano. Se o que realizo não tem outra justificativa que minha única subsistência, como se diferenciará então o crime do trabalho legal? O que realizo me dá a subsistência (e não deveria haver a princípio subsistência que não se fundamentasse no trabalho real), mas essa subsistência será antes uma consequência necessária de um empreendimento maior e útil à própria existência humana. Além disso, não havendo vida sem trabalho e sendo a escola, como se quer, a porta de entrada ao trabalho, é nela que deveria, portanto, verificar-se a escolha, mas não haverá escolha alguma sem que se conheçam as opções.

A ideia do destino grandioso está intimamente ligada à noção de gênio. Mas o que será o gênio? Dir-se-á que gênio é quem apresenta qualidades altíssimas de realização para determina atividade e o faz “ainda que contra si se verifiquem dificuldades enormes”, alguém, enfim, que, apesar de tudo, realiza algo à excelência. Ora, não direi que essa concepção seja inteiramente falsa, porque sempre, nas atividades humanas, se veem coisas impressionantes, mas me parece muito mais sensato imaginar o gênio como alguém que, como se diz, estava na hora certa e no lugar certo, tendo, evidentemente, as qualidades exatas para o empreendimento. Mozart teve, parece, um pai obstinado e muito exigente. Poderia haver enlouquecido ou, no mínimo, comido o velho pão que o diabo sem dó amassou sem chegar a lugar algum, caso não possuísse as qualidades requeridas para o empreendimento que se lhe apresentava. Mas que nada! Sua formação e sua prática, sua vida enfim, tudo lhe serviu para que pudesse desabrochar seu enorme talento. Steve Jobs, que abandonou o curso universitário ainda no primeiro ano, acabou percorrendo uma trajetória que somente depois pôde ele verificar ser a mais adequada às atividades que veio a desempenhar e as quais tão brilhantemente realizou. As pessoas têm talentos, tem gostos, executam certas atividades com prazer e empenho em detrimento de outras, e quando pode alguém ter a chance de desenvolver aquilo para que tem qualidades efetivas, verificar-se-ão aí provavelmente as condições mais favoráveis de emergência daquilo que chamamos genialidade.

O ideal seria poder a escola formar gênios, não lhes parece? A impossibilidade de que se realize um plano assim tão ambicioso não se deverá atribuir, é certo, unicamente à escola, e naquilo que depende exclusivamente dela será preciso que se considerem mais detidamente os porquês de assim não poder funcionar essa instituição. Eu diria antes que, melhor do que formar gênios (se isso for possível), deveria ser sempre função da escola disponibilizar conhecimentos e meios para que os talentos possam livremente exercer suas escolhas. A ausência de tais condições, não somente na escola, mas ainda na família e certamente na sociedade como um todo, é o que faz com que a juventude siga apostando equivocadamente em destinos grandiosos.

Um comentário:

  1. cara, bicho, gente, pessoa, indivíduo, cidadão:
    brilhante! tenho uma diferencinha: sou adepto da renda básica universal, atendendo ao conceito de sociedade justa preconizada por David Harvey. são oito itens:

    1. Desigualdade intrínseca: todos têm direito ao resultado do esforço produtivo, independentemente da contribuição
    2. Critério de avaliação dos bens e serviços: valorização em termos de oferta e demanda
    3. Necessidade: todos têm direito a igual benefício
    4. Direitos herdados: reivindicações relativas à propriedade herdada devem ser relativizadas, pois, por exemplo, o nascimento em uma família abastada pode ser atribuído apenas à sorte
    5. Mérito: a remuneração associa‑se ao mérito; por exemplo, estivador e cirurgião querem maior recompensa do que ascensorista e açougueiro
    6. Contribuição ao bem comum: quem mais beneficia aos outros pode clamar por mais recompensa
    7. Contribuição produtiva efetiva: quem gera mais resultado ganha mais do que quem gera menos
    8. Esforços e sacrifícios: quanto maior o esforço, maior a recompensa.

    para mim, isto significa que há duas visões de "trabalho". uma o vê como afirmação do homem sobre a natureza (e acho que, na sociedade da abundância do futuro, será reduzido a produzir e consumir arte e esporte). e a outra o vê como uma imposição "social" pela disputa do excedente econômico. esta é datada no tempo, pois sua base de sustentação tende a desaparecer, na medida em que o progresso humano avança, redimindo-o do trabalho elementar.

    mas insisto: entendo como primeira mensagem a problematização da individuação do ser humano, o que não pode acontecer por melhores meios do que a educação.
    DdAB

    ResponderExcluir