Sempre que passava por aquela
rodovia, e naquele quilômetro especificamente, Geraldo não podia
deixar de olhar a casa. Ia a Porto Alegre duas, às vezes três vezes
por semana, e sempre ali, naquele trecho, virava a cabeça na direção
da planície para admirar aquela morada cujos proprietários
desconhecia inteiramente. Quis perguntar, mas teve receio de ser mal
interpretado. Que lhe dizia saber quem morava ali ou a quem pertencia
aquilo? Passaria por curioso, no sentido negativo dessa palavra:
alguém cuja inquirição se devia à futilidade tão somente. De
fato, que lhe dizia a ele aquele lugar no meio da planície, a meio
caminho entre Porto Alegre e V*?
Um dia parou o automóvel. Vinha
sozinho e ainda o sol deixava-se ver por sobre os matos de eucalipto
que lá longe, ao fundo, formavam como que uma cerca àquela paisagem
de calendário: a casa ao centro da pradaria, uma lavoura de arroz a
um lado, vindo até a rodovia, e, do outro, depois de um galpão
alto, cuja frente estava voltada para a casa, um potreiro amplo onde
pastava uma ponta de gado charolês. Bateu uma foto com o celular e
partiu.
Acordou no meio da noite,
transpirando muito. Percebeu que sonhara com a casa. A mulher dormia
profundamente. Levantou-se e foi até a cozinha. Viu que também as
crianças dormiam. Esquentou água para o mate e foi tomá-lo na área
dos fundos. Teve vontade de fumar e lembrou que o colega Almiro lhe
deixara dois cigarros. Foi até a garagem pegá-los no carro. Sempre
queria parar de fumar. A mulher não gostava, nem as crianças, que,
influenciadas por ela, viviam a criticá-lo por isso. Quando um dia
viu o menino pegar um cigarro e, com este apagado, fingir que fumava,
assustou-se. Não queria que o filho viesse a fumar um dia. A mulher
não lhe perdoaria. Má influência.
Abastecido de nicotina, sentiu-se
melhor e voltou a pensar na casa. Teve a lembrança de ter visto
fumaça saindo da chaminé. A cena do pôr do sol, com a fumaça a
sair pela chaminé lhe fazia imaginar que ali naquela casa habitasse
a felicidade. Talvez não houvesse fumaça coisa nenhuma. Afinal,
estavam em maio, e o inverno nem se insinuava ainda. A ideia da
fumaça lhe parecia, porém, ajustar-se àquela paisagem. Quem morava
lá devia ser feliz, pensou infantilmente.
Geraldo não era um homem
infeliz. Ao contrário, não tinha muito do que se queixar. Tinha
saúde, os filhos tinham saúde. A mulher tinha saúde. Não lhes
faltava o principal, pensava sempre.
De volta à cozinha, releu pela
décima vez o papel. Que bobagem fizera ao confiar no Eugênio! Teria
agora de entregar a casa. Onde iam morar? E o dinheiro, deste nunca
mais veria a cor! A mulher o chamara de “burro”. A filha ia
dormir sem lhe dar o beijo de boa noite. Só o menino, pequeno, ainda
lhe queria, pensava. O cunhado, aquele pilantra, ria-se dele. “Só
o Geraldo pra fazer uma besteira dessas!”
Voltou a pensar na casa à beira
da estrada. Procurou inutilmente a foto no celular: decerto a tinha
inadvertidamente deletado. Teve um desejo desvairado de ir até lá,
no meio da noite. Não foi, claro, mas prometeu entrar na estrada de
chão que conduzia até ela na próxima oportunidade.
Teve de entregar a casa. O
advogado disse que seria difícil reaver o dinheiro, muito difícil.
Mas ia tentar. Geraldo não tinha esperanças. Ninguém tinha. O
cunhado zombava sempre. “Só tu mesmo, Geraldo!”
Foram morar na casinha de duas
peças nos fundos da casa do cunhado. Ele não queria. “Isso
nunca!” Mas a mulher o fez ver que não havia outra saída, que
deixasse de orgulho bobo. O outro podia até se ofender. Não lhes
estendia a mão? Que deixasse o orgulho vão de lado!
O pequeno salário de motorista
da prefeitura de V* era complementado por faxinas irregulares que
fazia a mulher. Esta tinha dificuldades em manter a clientela, pois
faltava muito. Alegava – embora Geraldo não soubesse lhe cobrar
coisa alguma – cansaço e dores na coluna. Ia ao posto de saúde, à
assistência social, vivia a andar de um lado a outro sem encontrar
saída e sem muito trabalho. Não era raro ultimamente chegar ele em
casa e pôr-se a atender aos filhos, que passavam os dias em frente à
tevê. O pequeno não ia ainda à escola, e a menina faltava muito,
tanto que repetia a quarta série pela terceira vez.
Depois de lavar a louça da
janta, Geraldo saiu até o pátio para fumar. Tão logo acendeu o
cigarro, apareceu o cunhado.
“E aí,
Gera, botando uma fumacinha nos miolos, hein! Quando é que tu vai
largar essa bosta, hein?”
Geraldo tinha a impressão de que
todas as frases do cunhado terminavam nesse “hein”.
O outro aproximou-se,
interrompendo-lhe o momento prazeroso.
“Tava
querendo falar contigo, Geraldo. Tem um momento?”
“Hum hum.”
“Pois, meu
velho, as coisas andam difíceis.”
“Nem me
fale!”
“Pois é...
Não queria desalojar a mana e as crianças, mas tô precisando
vender esta casa aqui. Acho que vocês vão ter de se ajeitar noutro
lugar, infelizmente.”
“Tudo bem.
Já estou com um negócio em vista. Ia até te falar.”
“Ah é? Mas
então fechou certinho.”
“Hum hum.”
Geraldo mentia. Não tinha nada
em vista. A notícia caía como uma bomba. O cunhado não só lhe
estragara o momento prazeroso em que fumava tranquilo depois daquela
louça toda (a mulher estava deitada com dor nas costas, as crianças
vendo tevê), mas também lhe roubava a noite de sono.
Almiro era quase mudo, e Geraldo
falava pouco. Assim mesmo se entendiam muito bem os dois. Viajavam
juntos às vezes. Almiro achava estranho, embora nada dissesse, que
Geraldo sempre quisesse parar um pouco à beira da estrada toda vez
que iam a Porto Alegre. Parava o carro no acostamento, descia,
acendia um cigarro e ficava olhando a campina. Estaria a par do que
lhe fazia a mulher? Saberia tudo já? Tinha pena de Geraldo. Gostava
dele. Via que procurava andar sempre pelo lado certo, ainda que isso
fosse bem difícil naquela administração cheia de conchavos e
atividades escusas. Nunca lhe ouvira falar mal de ninguém, nem mesmo
do calhorda do Eugênio. Era desatento. Outro em seu lugar já teria
compreendido as indiretas dos colegas no galpão da prefeitura.
A notícia veio de modo
desencontrado. Parece que furara um pneu. Ninguém entendia direito o
que se passara. No boletim de ocorrência da Polícia Rodoviária a
descrição do acidente era demasiadamente sucinta. O carro da
prefeitura de V* deixara a estrada principal como se entrasse numa
estrada perpendicular ali no meio daquela lavoura de arroz. A
capotagem foi violenta. O motorista, Geraldo Ferreira dos Santos,
infelizmente contrariando recomendações de serviço, não usava o
cinto de segurança. Morreu antes de chegar ao pronto socorro da
capital.
A simplicidade das palavras deste texto. Amei!
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo, Bia!
ResponderExcluirAbraço!