LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A CASA NA BEIRA DA ESTRADA

Sempre que passava por aquela rodovia, e naquele quilômetro especificamente, Geraldo não podia deixar de olhar a casa. Ia a Porto Alegre duas, às vezes três vezes por semana, e sempre ali, naquele trecho, virava a cabeça na direção da planície para admirar aquela morada cujos proprietários desconhecia inteiramente. Quis perguntar, mas teve receio de ser mal interpretado. Que lhe dizia saber quem morava ali ou a quem pertencia aquilo? Passaria por curioso, no sentido negativo dessa palavra: alguém cuja inquirição se devia à futilidade tão somente. De fato, que lhe dizia a ele aquele lugar no meio da planície, a meio caminho entre Porto Alegre e V*?
Um dia parou o automóvel. Vinha sozinho e ainda o sol deixava-se ver por sobre os matos de eucalipto que lá longe, ao fundo, formavam como que uma cerca àquela paisagem de calendário: a casa ao centro da pradaria, uma lavoura de arroz a um lado, vindo até a rodovia, e, do outro, depois de um galpão alto, cuja frente estava voltada para a casa, um potreiro amplo onde pastava uma ponta de gado charolês. Bateu uma foto com o celular e partiu.
Acordou no meio da noite, transpirando muito. Percebeu que sonhara com a casa. A mulher dormia profundamente. Levantou-se e foi até a cozinha. Viu que também as crianças dormiam. Esquentou água para o mate e foi tomá-lo na área dos fundos. Teve vontade de fumar e lembrou que o colega Almiro lhe deixara dois cigarros. Foi até a garagem pegá-los no carro. Sempre queria parar de fumar. A mulher não gostava, nem as crianças, que, influenciadas por ela, viviam a criticá-lo por isso. Quando um dia viu o menino pegar um cigarro e, com este apagado, fingir que fumava, assustou-se. Não queria que o filho viesse a fumar um dia. A mulher não lhe perdoaria. Má influência.
Abastecido de nicotina, sentiu-se melhor e voltou a pensar na casa. Teve a lembrança de ter visto fumaça saindo da chaminé. A cena do pôr do sol, com a fumaça a sair pela chaminé lhe fazia imaginar que ali naquela casa habitasse a felicidade. Talvez não houvesse fumaça coisa nenhuma. Afinal, estavam em maio, e o inverno nem se insinuava ainda. A ideia da fumaça lhe parecia, porém, ajustar-se àquela paisagem. Quem morava lá devia ser feliz, pensou infantilmente.
Geraldo não era um homem infeliz. Ao contrário, não tinha muito do que se queixar. Tinha saúde, os filhos tinham saúde. A mulher tinha saúde. Não lhes faltava o principal, pensava sempre.
De volta à cozinha, releu pela décima vez o papel. Que bobagem fizera ao confiar no Eugênio! Teria agora de entregar a casa. Onde iam morar? E o dinheiro, deste nunca mais veria a cor! A mulher o chamara de “burro”. A filha ia dormir sem lhe dar o beijo de boa noite. Só o menino, pequeno, ainda lhe queria, pensava. O cunhado, aquele pilantra, ria-se dele. “Só o Geraldo pra fazer uma besteira dessas!”
Voltou a pensar na casa à beira da estrada. Procurou inutilmente a foto no celular: decerto a tinha inadvertidamente deletado. Teve um desejo desvairado de ir até lá, no meio da noite. Não foi, claro, mas prometeu entrar na estrada de chão que conduzia até ela na próxima oportunidade.
Teve de entregar a casa. O advogado disse que seria difícil reaver o dinheiro, muito difícil. Mas ia tentar. Geraldo não tinha esperanças. Ninguém tinha. O cunhado zombava sempre. “Só tu mesmo, Geraldo!”
Foram morar na casinha de duas peças nos fundos da casa do cunhado. Ele não queria. “Isso nunca!” Mas a mulher o fez ver que não havia outra saída, que deixasse de orgulho bobo. O outro podia até se ofender. Não lhes estendia a mão? Que deixasse o orgulho vão de lado!
O pequeno salário de motorista da prefeitura de V* era complementado por faxinas irregulares que fazia a mulher. Esta tinha dificuldades em manter a clientela, pois faltava muito. Alegava – embora Geraldo não soubesse lhe cobrar coisa alguma – cansaço e dores na coluna. Ia ao posto de saúde, à assistência social, vivia a andar de um lado a outro sem encontrar saída e sem muito trabalho. Não era raro ultimamente chegar ele em casa e pôr-se a atender aos filhos, que passavam os dias em frente à tevê. O pequeno não ia ainda à escola, e a menina faltava muito, tanto que repetia a quarta série pela terceira vez.
Depois de lavar a louça da janta, Geraldo saiu até o pátio para fumar. Tão logo acendeu o cigarro, apareceu o cunhado.
E aí, Gera, botando uma fumacinha nos miolos, hein! Quando é que tu vai largar essa bosta, hein?”
Geraldo tinha a impressão de que todas as frases do cunhado terminavam nesse “hein”.
O outro aproximou-se, interrompendo-lhe o momento prazeroso.
Tava querendo falar contigo, Geraldo. Tem um momento?”
Hum hum.”
Pois, meu velho, as coisas andam difíceis.”
Nem me fale!”
Pois é... Não queria desalojar a mana e as crianças, mas tô precisando vender esta casa aqui. Acho que vocês vão ter de se ajeitar noutro lugar, infelizmente.”
Tudo bem. Já estou com um negócio em vista. Ia até te falar.”
Ah é? Mas então fechou certinho.”
Hum hum.”
Geraldo mentia. Não tinha nada em vista. A notícia caía como uma bomba. O cunhado não só lhe estragara o momento prazeroso em que fumava tranquilo depois daquela louça toda (a mulher estava deitada com dor nas costas, as crianças vendo tevê), mas também lhe roubava a noite de sono.
Almiro era quase mudo, e Geraldo falava pouco. Assim mesmo se entendiam muito bem os dois. Viajavam juntos às vezes. Almiro achava estranho, embora nada dissesse, que Geraldo sempre quisesse parar um pouco à beira da estrada toda vez que iam a Porto Alegre. Parava o carro no acostamento, descia, acendia um cigarro e ficava olhando a campina. Estaria a par do que lhe fazia a mulher? Saberia tudo já? Tinha pena de Geraldo. Gostava dele. Via que procurava andar sempre pelo lado certo, ainda que isso fosse bem difícil naquela administração cheia de conchavos e atividades escusas. Nunca lhe ouvira falar mal de ninguém, nem mesmo do calhorda do Eugênio. Era desatento. Outro em seu lugar já teria compreendido as indiretas dos colegas no galpão da prefeitura.
A notícia veio de modo desencontrado. Parece que furara um pneu. Ninguém entendia direito o que se passara. No boletim de ocorrência da Polícia Rodoviária a descrição do acidente era demasiadamente sucinta. O carro da prefeitura de V* deixara a estrada principal como se entrasse numa estrada perpendicular ali no meio daquela lavoura de arroz. A capotagem foi violenta. O motorista, Geraldo Ferreira dos Santos, infelizmente contrariando recomendações de serviço, não usava o cinto de segurança. Morreu antes de chegar ao pronto socorro da capital.

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