LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

domingo, 31 de julho de 2011

LÍNGUA DIFÍCIL? -- UMA REFLEXÃO SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA E O USO QUE DELA TEMOS FEITO

O texto a seguir foi utilizado especificamente em sala de aula, com duas turmas minhas de Português. Buscava algo sobre o assunto e acabei escrevendo o texto que queria. Não o dei a conhecer em meu nome, porém. Para evitar impor minha opinião aos alunos, achei melhor valer-me de um pseudônimo, um certo Sebastião de tal. Que meus alunos me perdoem o truque, até porque não julgo que as aulas em que o trabalhamos tenham sido das piores.

Publico-o agora aqui no blogue porque, primeiro, me parece um bom texto em si mesmo, depois, não deixa de relacionar-se com aquele aqui publicado na semana passada. Ao leitor de considerar as contradições e acertos.

Abraço,

Conrado

PS Não teria sido César (como está escrito no cabeçalho do blogue), mas seu sobrinho Otávio Augusto quem mantinha em cerimônias públicas um escravo a recitar-lhe ritualmente "Cave ne cadas; memento mori" (=Cuidado para não caíres; lembra-te de que deves morrer). Pelo menos essa é a informação colhida na revista Ça m'intéresse (núm. 6, junho de 2011), que o Gugu tão gentilmente me trouxe da França. Ah, sim, e "Que sais-je?" se traduz por "O que sei?", caso alguns de meus leitores desconheçam o francês, o que não é improvável, em tempos em que língua estrangeira moderna será inglês ou espanhol.


O português é uma língua difícil, é o que todo mundo diz. Nós brasileiros acreditamos que é muito mais complicado aprender o português do que aprender, por exemplo, o inglês, ou mesmo o chinês! Na realidade, não é bem verdade que o português seja difícil. Em todo caso, certamente não é mais difícil ou complicado do que qualquer outra língua.

Todas as línguas são complicadas, são difíceis, se as quisermos entender e falar bem, mas são bastante acessíveis se nos limitarmos à mera comunicação básica. No caso de nossa língua-mãe, visto havermos nascido em seu seio e, por isso, sermos, justamente, falantes nativos, não pode haver nada mais fácil para nós do que usá-la em nosso dia a dia. Todo falante nativo de uma língua a domina perfeitamente nesse contexto. A complicação nasce quando queremos usá-la para além da comunicação imediata e cotidiana. Escrever ou ler (dependendo, é claro, daquilo que formos ler ou escrever) pode revelar-se bastante árduo. E mesmo falar em contextos aos quais não estivermos habituados poderá tornar-se algo apavorante.

Aqueles que frequentaram a escola por alguns bons anos saberão decerto lidar linguisticamente com um número maior de contextos do que aqueles desafortunados que pouca ou nenhuma escola tiveram. Mas, se por um lado a escola nos auxilia, e muito, por outro não deixa de incutir-nos noções equivocadas acerca de nossa própria língua. Não fosse isso, não haveria por aí gente educada (no sentido de instruída) falando tanta bobagem sobre o assunto.

Recordo-me de ter ouvido uma vez da boca de uma professora de Português que “gratuíto” simplesmente não existia, quando lhe haviam dito que, a despeito de essa palavra não constar assim acentuada no Houaiss e no Aurélio, era assim que as pessoas a pronunciavam, incluindo entre estas até apresentadores de telejornais como o William Bonner. Ora, se as pessoas (e falo de pessoas instruídas) agora entendem ver na sílaba “-tui-” não mais um ditongo e sim um hiato (daí o acento: “-tuí-”), não será a ausência desse fato (largamente documentado) nos dicionários, por melhores que sejam estes, que vai determinar a questão. O fato de ocorrências assim não constarem nos dicionários se deve tão somente à limitação que obras desse tipo necessariamente têm. Você pode até preferir e recomendar a pronúncia ditongada em “gratuito” e “circuito”, mas, uma vez amplamente documentada a pronúncia em hiato dessas palavras (“gratuíto” e “circuíto”), você, ainda mais sendo profissional do idioma, jamais poderá negá-la nem, muito menos, condená-la.

É preciso aceitar o fato de que uma língua viva sofre alterações com o passar do tempo. Se tais mudanças são para pior ou melhor, tal julgamento, bastante subjetivo, não é suficiente para freá-las. Depois, é necessário entender que mesmo os julgamentos de valor também se alteram. O que hoje é considerado o português vernacular e castiço, ainda ontem era o chamado latim vulgar, ou seja, o latim da ralé. E a passagem do latim vulgar ao português culto se deveu menos ao letramento da população que se valia dessa língua que ao puro e simples enriquecimento de uma camada específica de falantes dela, que, então com posses e pecúnia, entendeu valorizar seu idioma. Mas não o valorizou para todos os falantes, senão apenas para aqueles abastados que dispunham de tempo e meios para cultivá-lo. Os outros... Bem, os outros seguiram “falando errado”.

Há muitos modos distintos de se falar o mesmo idioma. A valorização de um modo de falar, por o considerarmos talvez superior, mais elevado, culto, etc., não deveria nunca desconsiderar os demais, sob pena de silenciarem-se seus falantes. O mundo em que hoje vivemos, que vem brigando por democracia e igualdade, que busca a compreensão das diferenças e o entendimento dos divergentes, deve procurar ser o palco da aceitação e da fraternidade. Ainda que lá no fundo tendamos a preferir um modo a outro, nada nos autoriza a desrespeitar quem prefira diferentemente.

5 comentários:

  1. belo texto, Conrado. fiquei a me indagar o que é, então, "falar errado". acho que entendo que escrever errado, por exemplo, é "eckrevê errauldo", aogo assim. mas "nós come os pexe", não é igualmente estranho?
    DdAB

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  2. Amado Dondo!

    Que desgraça! Acabo de perder por inteiro uma resposta a teu comentário (na verdade, um comentário on its own), e isso por razões que não saberia explicar. Coisas do maldito “programa”!

    Enfim, vamos lá de novo (para o que agora será forçosamente um novo texto).

    (Agora, gato escaldado, estou escrevendo em documento do Word, devidamente salvo!)

    Em primeiro lugar, as aspas em “falando errado” indicam que isso não vem do autor. Tu com certeza sabes que um dos usos desses sinais ortográficos é justamente indicar a “voz” alheia.

    O que me parece importante considerar quando falamos de “erro” é o seguinte: numa dada língua só se considerará erro aquilo que seus falantes nativos jamais usariam. Assim, o conceito de erro fica restrito ao uso que dessa língua fazem os estrangeiros.

    Isso oralmente. É claro que, quando consideramos a língua escrita, a noção de erro engloba também desvios que cometem aqueles que não têm, digamos, intimidade com esse meio, ainda que, também, neste caso, possamos sempre levar em conta distintas formas de escrita, consoante a finalidade, o veículo, etc.

    Bem pesadas as coisas, não seria talvez incorreto chamarmos de “estrangeiro” alguém que, embora falante nativo do português, pouco uso faça dessa língua em sua modalidade escrita. É evidente que, quando alguém assim se põe a escrever, mesmo o registro exato daquilo que efetivamente fale lhe será sempre difícil. O que dizer do registro de um de falar bastante distinto do seu!?

    Admitamos, agora, que uma dada língua (o português, por exemplo) se manifeste no uso de seus falantes nativos em distintas variedades: P1, P2, P3...Pn.

    Posição exclusiva: apenas, digamos, P3 é correta, as demais variedades sendo arremedos de P3, devendo, por isso, ser corrigidas o quanto antes.

    Posição inclusiva: todas as variedades são corretas, embora, numa determinada situação, nem todas lhe sejam “adequadas”.

    Como decidir a questão? Cabe a cada uma dessas posições justificar-se, evidentemente. E tal justificativa será, claro, demonstrar por que P1, P2, etc. são ou não são “erradas”, assim como por que P3 é ou não é “a” correta.

    No outro “comentário” eu avancei nessa questão. Agora, por falta de tempo, não vou fazê-lo. Remeto o leitor interessado para o livro, já mencionado na semana passada, da Magda Soares (Linguagem e escola: uma perspectiva social), onde essa autora discute detidamente a questão.

    Fico por aqui, sempre agradecido de tua leitura atenta e fiel.

    Grande abraço do amigo

    Conrado

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  3. Onde acima se lê "O que dizer do registro de um de falar bastante distinto do seu!?", favor desconsiderar o "de" entre "um" e "falar".

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  4. Caro professor,

    Quero fazer uma crítica construtiva. Ao ler o seu texto fico com a impressão de que você não tem interesse em contribuir com a manutenção do idioma. Aqueles que procuraram valorizar o idioma estabelecendo padrões que o tornaram mais claro e interessante de usar, estes tiveram um esforço. Pois agora por todos os lados se vê um esforço contrário, tentando enfraquecer a noção de certo e errado, norma culta, regras, etc. O enriquecimento de nosso idioma está ameaçado, corremos o risco de retroceder. Isto não é novidade nenhuma, pois a aceitação do errado como "não tão errado assim" está cada vez maior, e isto se reflete no idioma também. É uma pena, porém, que aqueles que deveriam lutar para proteger os avanços históricos e ampliá-los tornem-se cúmplices do empobrecimento da língua.
    Creio que o uso da nossa língua seria qualificado por meio de um maior e melhor conhecimento do mesmo, a fim de que todos possam dominá-lo bem, ao invés de se estabelecer a média de conhecimento como normal. É necessário levar as pessoas ao conhecimento, ao invés de aceitar que não consigam obtê-lo. Em outras palavras, ensinar de verdade, e não simplesmente dizer as pessoas que podem ficar como estão, sem muito entendimento. É isso.

    Roberto.

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  5. Roberto:

    Para que não penses que te deixo sem resposta (sendo, justamente, meu costume responder aos comentários que me fazem os leitores), publico esta pequena nota aqui.

    Na verdade, redigi uma resposta bem mais extensa às tuas considerações, tanto que não coube aqui neste espaço.

    Decidi, então, que vou publicar essa resposta na postagem da próxima semana.

    Era isso.

    Te agradeço a participação.

    Abraço,

    Conrado

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