Já nem queria mais entrar na celeuma que a publicação do livro didático Por uma vida melhor – da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC) – acabou gerando. Por curiosidade, porém, decidi dar uma olhada no livro e fui procurá-lo na internet. Acabei encontrando, em pdf, apenas o capítulo 1 da obra (“Escrever é diferente de falar”), justamente aquele que teria deflagrado a assuada (ver http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/V6Cap1.pdf)
Se o leitor tiver a paciência de ler esse capítulo, verá que não tem nada de mais. Trata-se de uma aula de Português como tantas outras publicadas ou não em livros específicos para esse fim. O que parece ter detonado a discussão foi o fato de os autores, muito acertadamente, reconhecerem que, “muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente” daquela existente na chamada “norma culta”. Assim, ao lado de “os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados”, teríamos formas variantes como “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. Do mesmo modo, ao lado de construções como “os meninos pegam o peixe”, existiriam variantes como “os menino pega o peixe” ou mesmo “nós pega o peixe”.
Ora, leitor amigo, que formas assim variantes existam, ninguém que tenha olhos que vejam e ouvidos que ouçam há de duvidar! Que não devam ser ensinadas na escola, tampouco haveria por que discutir-se, mas não em razão, como se tem dito, de serem essas variantes “erradas”, e sim porque formas assim, sendo populares (e, como tais, “corretíssimas” dentro de seu contexto), já se encontram, na maior parte dos casos, muito bem instaladas no repertório linguístico de nossos alunos e vêm com eles para a escola, juntamente com a cultura das telenovelas, o funk, o pagode, o hip-hop e tantas outras manifestações da cultura popular. Caberia à escola apresentar-lhes o que desconhecem, não é verdade? Pois bem, e é isso mesmo que propõem os autores da obra: “Como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário. (p.12)
Ao mencionarem essas formas variantes, típicas do falar popular, os autores do livro parecem no entanto ter procedido de modo bastante adequado, porque corretamente partem do conhecido para o desconhecido, mostrando aos alunos que aquilo que trazem de casa não é o caos, e sim algo que pode ser analisado e compreendido. O livro se destina a alunos da EJA, isto é, a alunos oriundos de classes desfavorecidas socialmente, que voltam à escola para reencontrar o caminho que um dia perderam. Portanto, o que está se dizendo a essas pessoas NÃO É que aquilo que têm, aquilo que são, aquilo que trazem é “errado”, é “defeituoso”, é “feio”, e como tal deva ser abandonado. O que se diz a essas pessoas é que sua cultura linguística faz sentido, muito sentido, sendo por isso uma das tantas manifestações de nossa riquíssima língua portuguesa.
Vistas as coisas assim, agora é ir aos poucos buscando entender outras variantes do português, ir passo a passo entrando em contato com outras possibilidades de expressão, outras fontes de cultura, as quais, repito, não devem jamais ser vistas como substitutas das antigas e já incorporadas, mas antes como um bem-vindo e oportuno acréscimo ao que já se sabe.
Para finalizar, gostaria de mencionar um livro sobre a relação linguagem e escola que o leitor interessado por essas questões deveria consultar sem falta. Trata-se, justamente, de Linguagem e escola: uma perspectiva social, de Magda Soares. Tenho comigo a 9ª edição, de 1992, publicada pela Ática na “série fundamentos” (ISBN 85 08 02694 3). A autora, que até onde eu saiba é professora da Universidade Federal de Minas Gerais, faz uma exposição clara e muito bem informada sobre como a questão da linguagem se tem mostrado uma das questões centrais da educação.
Conrado,
ResponderExcluirChegaste a acompanhar como a RBS tratou o caso do tal livro?
Fiquei extremamente indignado, pois há certos colunistas que têm a audácia de comentar e criticar todos os assuntos, de todas as áreas do conhecimento, como se tivessem autoridade para tal.
Segue o link de um texto do Davi Coimbra, em que ele ridiculariza uma linguista que se manifestou sobre o assunto. A professora em questão, por sinal, foi orientadora de meu trabalho de conclusão no curso de graduação.
http://wp.clicrbs.com.br/davidcoimbra/2011/05/19/a-defesa-da-ignorancia/?topo=13,1,1,,,13
Acabo de ler o texto do David Coimbra que referes, Rodrigo. Ele com certeza precisaria estudar a questão antes de emitir opinião tão categórica, sobretudo quando vem à público se contrapor à Ana Zilles, Deus do céu! Qualquer pessoa que tenha se detido um pouco mais sobre o assunto decerto o terá daqui pra diante em menor grau de estima. Com todo o talento que tem, David Coimbra deveria ter mais cuidado ao falar de assuntos que desconhece, sob pena de acabar expondo-se ao ridículo. Obrigado pelo comentário e a referência. Grande abraço.
ResponderExcluirConrado, li uma reportagem na revista Isto É - nº 2167, de 25/05/2011, sobre este assunto, "O assassinato da língua portuguesa". É extremamente tendenciosa, apresenta o assunto apenas por uma óptica e faz uma comparação com o ensino da Matemática, no qual 2+2 sempre é 4. É claro que isto não se aplica no ensino de LP. Na reportagem, a Ana Maria Machado e o Cristovão Tezza fazem comentários pertinentes e lúcidos a respeito. Gostei deste tópico, tem mais a tua "cara". Adriana
ResponderExcluirAdri, acabo de ler a matéria que referes (a qual encontrei em http://www.istoe.com.br/reportagens/138200_O+ASSASSINATO+DA+LINGUA+PORTUGUESA). Dá um embrulho no estômago!A questão é apresentada de parti pris, completamente tendenciosa e parcial. (A crítica que se faz no final ao Haddad desmascara tudo.) A única voz discordante (e sensata) ali é a do Tezza mesmo, que, sendo professor de Português muito antes de alcançar o sucesso literário, compreende bem melhor a coisa. O fato de a concordância ter variações é justamente o que faz o estudo da língua algo deveras interessante. É como escreveu um dos comentaristas: "Quem escreveu essa matéria nunca ouviu falar em variação linguística (com certeza!)". Obrigado mais uma vez, Adri, pelo teu comentário e incentivo.
ResponderExcluiramigos:
ResponderExcluirno outro dia, postei um negócio em meu blog sobre o tema. insurgi-me ao ler que lá no livro se lê:
"A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio."
quer ler meu blim-blim-blim? dá uma olhada aqui:
http://19duilio47.blogspot.com/2011/05/lingua-do-mal.html.
acho que meu ponto mais divertido naquela postagem é dizer que eu também fui vítima de preconceito linguístico quando, em Jaguari/1965, falei que era contra que a rapaziada local "seguisse matando os passarinhos". achavam que este plural seria digno de... Porto Alegre, mas não de homem. num sentido numérico e pugnaz, eles eram a classe dominante. e me subjugaram com este jeito que consideraram pernóstico de falar.
DdAB
Dondo:
ResponderExcluirPrimeiro, te peço desculpas por ter demorado em responder ao teu comentário. É que recebi a tão aguardada visita de Mrs. Sue Berni aqui em casa, e, tão logo ela me viu sentado à frente do computador digitando algo para ti, se encheu do mais carrancudo ciúme e foi logo mandando a Jana ir lá me buscar...
Brincadeiras à parte, tratemos do caso que narras no teu blogue (http://19duilio47.blogspot.com/2011/05/lingua-do-mal.html) e, mais brevemente, no comentário aí acima.
Sofreste preconceito linguístico lá? Sofreste, claro que sim. Mas foste também ingênuo, além de, I'm sorry to say, algo arrogante (aquela arrogância intrínseca a quem se educa). Não respeitaste uma das máximas mais notórias da comunicação, que nos diz devermos procurar sempre "convengir" a fim de garantir o sucesso em nossas interações linguísticas. As distintas formas de nos comunicarmos se assemelham às roupas que temos em nosso guarda-roupas (já ouviste decerto falar disso, não?), e tu, meu caro, quiseste vestir o paletó e a gravata num churrasco em que todos usavam simples bermudas e sandálias havaianas.
Grande abraço!
Conrado