LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Um prefácio de Erich Fromm (3a e última parte)

III

Ao ler este livro, me senti grandemente estimulado e encorajado. Espero que assim se sintam muitos outros leitores. Isso não significa que eu concorde com tudo quanto diga o autor. Decerto a maioria dos leitores não lerá este livro como se fosse ele os Evangelhos, e tenho certeza de que seu autor, mais do que qualquer outra pessoa, não desejaria que isso acontecesse.

Gostaria, portanto, de assinalar duas de minhas principais reservas. Sinto que Neill de certa forma subestima a importância, o prazer e a autenticidade de uma compreensão intelectual do mundo em favor de uma apreensão de preferência emocional e artística. Além disso, o autor se mostra bastante embebido nas premissas e proposições de Freud, superestimando por isso, assim me parece, o significado do sexo, como é de praxe entre os freudianos. Contudo, tenho a impressão de que o autor é homem de tamanho realismo, de tamanha genuína compreensão do que se passa na mente infantil, que essas minhas reservas se referem antes a algumas de suas formulações do que à sua efetiva abordagem da criança.

Enfatizo a palavra “realismo” porque o que mais me chama a atenção na abordagem do autor é sua capacidade de ver, de separar o fato da ficção, sem por isso deixar-se levar pelas racionalizações e ilusões com que vive a maioria das pessoas, as quais tendem a bloquear-lhes experiências verdadeiras.

Neill é um homem com um tipo de coragem bastante raro hoje em dia, a coragem de acreditar naquilo que vê e de combinar realismo com uma firme fé na razão e no amor. Ele mantém uma inflexível reverência pela vida e enorme respeito pelo indivíduo. É um experimentalista e um observador, e não um sujeito dogmático que se firme de modo egotista naquilo que esteja fazendo. Neill mistura educação com terapia, mas para ele terapia não é uma matéria separada que se use para resolver “problemas” especiais, e sim apenas o processo de demonstrar à criança que a vida aí está para ser tomada, e não algo de que se fuja.

Ficará claro ao leitor que a experiência que este livro relata é necessariamente algo que não se pode repetir muitas vezes em nossa sociedade atual. Isso assim é não apenas porque depende de ser levada adiante por uma pessoa extraordinária como Neill, mas também porque poucos pais terão a coragem e a independência suficientes de cuidar mais da felicidade do que do “sucesso” de seus filhos. Compreenda-se, no entanto, que tal fato de modo algum vem diminuir o significado deste livro.

Embora não exista uma escola como Summerhill nos Estados Unidos hoje, qualquer pai ou mãe pode sempre beneficiar-se da leitura deste livro. Estes capítulos vão desafiá-los a repensar o modo como educam seus filhos. O leitor verá que o modo como Neill lida com as crianças é bastante diverso daquilo que muita gente desdenhosamente rejeita por considerar “permissivo”. A insistência do autor em um certo equilíbrio na relação entre pais e filhos – liberdade sem permissividade – é o tipo de pensamento que pode radicalmente mudar as atitudes em casa.

Os pais atenciosos ficarão decerto estarrecidos ao perceberem quanta pressão e poder vêm inadvertidamente usando contra seus próprios filhos. Este livro com certeza fornecerá novos significados a palavras como amor, aprovação,liberdade.

Neill mostra respeito inegociável pela vida e a liberdade, assim como uma radical negação do uso da força. Crianças educadas de acordo com os métodos que propõe certamente desenvolverão em si mesmas qualidades como razão, amor, integridade e coragem, que são as metas da tradição humanística ocidental.

Ora, se tais coisas verificam-se em Summerhill, podem também vir a ocorrer onde quer que seja – bastando para tanto que as pessoas estejam prontas para isso. De fato, como o autor observa, não existem crianças-problema, e sim unicamente “pais-problema” e “humanidade-problema”. Tenho certeza de que o trabalho de Neill é uma semente que vai germinar. Suas ideias não tardarão em encontrar acolhida numa nova sociedade em que o próprio homem e seu florescimento venham a constituir-se no supremo objetivo de todo o esforço social.

sábado, 18 de junho de 2011

Um prefácio de Erich Fromm (2a parte)

II

O sistema de A. S. Neill é uma abordagem radical para a educação infantil. Na minha opinião, seu livro é de grande importância, porque representa o verdadeiro princípio da educação sem medo. Em Summerhill, a autoridade não mascara um sistema de manipulação.

Summerhill, o livro, não faz uma explanação detalhada de uma teoria. Relata tão somente a experiência factual de quase 40 anos. O autor sustenta que “a liberdade funciona”.

Os princípios que fundamentam o sistema de Neill são apresentados neste livro de modo simples e inequívoco. Vejamos, resumidamente, quais sejam.

1. Neill mantém uma fé inabalável “na bondade da criança”. Ele acredita que comumente a criança não nasce incapaz, nem covarde ou um autômato sem alma; ao contrário, normalmente a criança mostra grandes potencialidades para amar a vida e interessar-se por ela.

2.O propósito da educação – na verdade o propósito da própria vida – é trabalhar com alegria e encontrar a felicidade. Entende Neill que a felicidade significa interessar-se pela vida, ou, como eu mesmo gosto de dizer, responder à vida não apenas com o cérebro simplesmente, mas com a personalidade inteira.

3.Em educação, o desenvolvimento intelectual não é suficiente. A educação deve ser tanto intelectual quanto emocional. Na sociedade moderna, encontra-se uma crescente separação entre intelecto e sentimento. As experiências do homem hoje são sobretudo experiências de pensamento em vez de uma imediata apreensão do que seu coração sente, seus olhos veem e seus ouvidos ouvem. Com efeito, essa separação entre intelecto e sentimento vem conduzindo o homem a um estado mental próximo da esquizoidia, no qual ele se vê quase incapacitado de experienciar o que não esteja diretamente relacionado ao pensamento.

4.A educação deve ajustar-se às necessidades psíquicas da criança e às suas capacidades. A criança não é um ser altruísta. Ela ainda não ama com o amor maduro de um adulto. É um erro esperar da criança algo que ela só poderá mostrar de forma hipócrita. O altruísmo se desenvolve depois da infância.

5.A punição e a disciplina, imposta de modo dogmático, acabam criando o medo, e este engendra a hostilidade, que pode até nem ser consciente, mas acarreta em todo caso uma paralisia do empenho e da autenticidade de sentimento. O ato de extensivamente disciplinar a criança é prejudicial por impedir um desenvolvimento psíquico saudável.

6.Liberdade não significa permissividade. Esse princípio muito importante, enfatizado por Neill, quer dizer que o respeito entre os indivíduos deve ser mútuo. Um professor não usa força contra uma criança, nem tem a criança o direito de usar de força contra um professor. Uma criança não deve impor-se a um adulto apenas porque é criança, nem deve valer-se de pressão nas muitas maneiras através das quais as crianças o fazem.

7.Muito próxima do princípio acima está a necessidade de sinceridade verdadeira da parte do professor. O autor garante nunca haver mentido para uma criança em seus 40 anos de trabalho em Summerhill. Quem quer que leia este livro ficará convencido de que tal afirmação, que pode até soar como presunção, não passa da simples verdade.

8.O desenvolvimento humano saudável torna necessário que a criança acabe rompendo os laços primários que a conectam com seus pais, ou com os substitutos destes mais tarde na sociedade, de modo a que ela se torne verdadeiramente independente. É preciso que a criança aprenda a encarar o mundo como um indivíduo. Deve aprender a encontrar sua segurança não em um vínculo simbiótico, mas em sua própria capacidade de entender o mundo de modo intelectual, emocional e artístico. Deve usar todo o seu poder para encontrar-se em união com o mundo, em vez de buscar segurança através da submissão ou dominação.

9.Sentimentos de culpa têm primeiramente a função de sujeitar a criança à autoridade. Sentimentos de culpa são um obstáculo à independência. Eles dão início a um ciclo que oscila constantemente entre rebeldia, arrependimento, submissão e nova rebeldia. A culpa, como concebida pela maioria das pessoas em nossa sociedade, não é originariamente uma reação à voz da consciência, mas essencialmente o acordar da desobediência contra a autoridade e o consequente medo de represália. Pouco importa se a punição é física ou a recusa de amor, ou ainda se acaba fazendo com que a criança se sinta um estranho. Todo sentimento de culpa cria o medo, e o medo engendra a hostilidade e a hipocrisia.

10.Summerhill não oferece educação religiosa. Isso, porém, não quer dizer que Summerhill não se interesse pelo que poderíamos chamar de valores humanísticos básicos. Neill observa sucintamente que “a batalha não é entre aqueles que creem em teologia e aqueles que não creem em teologia; ela se dá antes entre aqueles que acreditam na liberdade humana e aqueles que acreditam na supressão da liberdade humana”. E continua: “Algum dia uma nova geração deixará de aceitar a obsoleta religião e mitos de hoje. Quando a nova religião vier, não mais se aceitará a ideia de que o homem nasceu pecador. Uma nova religião louvará a Deus ao fazer o homem feliz.”

Neill é um crítico da sociedade dos dias atuais. Ele enfatiza que o tipo de pessoa que se desenvolve numa tal sociedade é o homem-massa. “Vivemos numa sociedade insana” e “a maioria de nossas práticas religiosas são imposturas”. Muito logicamente, o autor é um internacionalista, mantendo a firme e inflexível posição de que a prontidão para a guerra é um atavismo bárbaro da raça humana.

Com efeito, Neill não tenta educar crianças para que se ajustem à ordem existente, mas se empenha em educá-las para que se transformem em seres humanos felizes, em homens e mulheres cujos valores não são ter muito, nem usar muito, mas antes ser muito. Neill é um realista. Ele entende que, embora as crianças que educa não venham necessariamente a tornar-se pessoas bem-sucedidas num sentido mundano, elas terão sempre adquirido um senso de genuinidade que efetivamente as protegerá de tornarem-se marginalizadas ou mendigos famélicos. O autor toma partido diante da distinção que se faz entre desenvolvimento humano integral e completo sucesso mercadológico, sendo inflexivelmente honesto no modo como prossegue seu caminho rumo ao objetivo escolhido.

domingo, 12 de junho de 2011

Um prefácio de Erich Fromm

Olá, amigos!

O texto a seguir é a primeira parte de um prefácio que o psicanalista alemão Erich Fromm escreveu para uma coletânea de textos de A. S. Neill, o criador da escola inglesa Summerhill, publicada nos Estados Unidos pela Hart Publishing Company em 1960, sob o título SUMMERHILL: A RADICAL APPROACH TO CHILD REARING (algo como Summerhill: uma abordagem radical para a educação infantil). O livro, achei-o num sebo em Porto Alegre e é uma de minhas leituras do momento. Trata-se daquelas coisas maravilhosas que só encontramos nos anos 60. Atuais ou não, sempre serão, penso, relevantes, já que nos fazem refletir.

Traduzi o texto meio que às pressas (poucas coisas fazemos hoje que não sejam às carreiras, não é?), mas acho que se pode entendê-lo convenientemente. A sequência (há mais duas partes) vem em postagens futuras, deus querendo e o diabo deixando.

Abraço e boa leitura!

Conrado

I.

Durante o século XVIII, ideias de liberdade, democracia e autodeterminação foram proclamadas por filósofos progressistas, e já antes da primeira metade do século XIX essas ideias foram usadas no campo da educação. O princípio básico de tal autodeterminação foi a substituição da autoridade pela liberdade, ensinando a criança sem o uso da força, valendo-se tão somente de sua curiosidade e necessidades espontâneas, fazendo-a, enfim, interessar-se pelo mundo a seu redor. Essa atitude deu início à educação progressiva, revelando-se, assim, um importante passo no desenvolvimento humano.

Contudo, os resultados desse novo método não demoraram a mostrar-se decepcionantes, tanto que, nos últimos anos, uma crescente reação à educação progressiva veio se estabelecendo. Hoje, muitas pessoas acreditam que a teoria que dá sustentação à educação progressiva está incorreta, devendo por isso simplesmente ser descartada. Há hoje, inclusive, um considerável movimento em ação requerendo cada vez mais disciplina e até mesmo uma campanha no sentido de permitir que os professores voltem a punir fisicamente seus alunos.

Talvez o fator mais importante nessa reação à educação progressiva seja o notável sucesso no ensino conseguido na União Soviética. Lá os métodos antiquados de autoritarismo são usados a toda força, e os resultados, se considerarmos o conhecimento, parecem indicar que deveríamos mesmo voltar à velha disciplina e esquecer-nos da liberdade infantil.

Estaria de fato equivocada a ideia de educação sem o uso do constrangimento físico? Ainda que a ideia em si não esteja errada, como se pode explicar seu relativo fracasso?

Creio que a ideia de liberdade para as crianças não esteja errada, e sim que tal ideia tenha quase sempre sido deturpada. Mas, para que possamos discutir esse assunto de modo claro, será necessário antes entendermos a natureza da liberdade. E para que possamos fazê-lo, precisamos compreender a diferença entre autoridade aberta e autoridade anônima.

A autoridade aberta é exercida direta e explicitamente. A pessoa com autoridade fala diretamente àquela que lhe está sujeita: “Você deve fazer isso. Se não fizer, sofrerá tais e tais sanções”. A autoridade anônima, por sua vez, tende a esconder que esteja valendo-se de força impositiva. Ela finge não haver autoridade alguma, fazendo de conta que tudo ocorre com o consentimento do indivíduo. Se o professor do passado dizia ao Joãozinho: “Você deve fazer isso ou vai ser punido”, o professor hoje diz algo como “Tenho certeza de que você vai gostar de fazer isso”. Neste caso, a sanção por desobediência não será mais a punição corporal, mas antes a face desgostosa dos pais ou, o que é ainda pior, o sentimento que invade o aluno de não achar-se “ajustado”, de não estar agindo como os demais. A autoridade aberta usava a imposição física; a autoridade anônima emprega a manipulação psíquica.

A passagem da autoridade aberta do século XIX para a autoridade anônima do século XX se deveu às necessidades organizacionais de nossa moderna sociedade industrial. A concentração de capital levou à formação de empresas gigantes, gerenciadas por burocracias hierarquicamente organizadas. Em enormes conglomerações, operários e funcionários de escritórios trabalham juntos, cada indivíduo sendo uma parte, como que uma peça de uma vasta e organizada máquina de produção, a qual, para que possa funcionar, precisa mover-se suavemente e sem jamais interromper-se. Numa tal organização de produção, o indivíduo é gerenciado e manipulado.

Também na esfera do consumo (na qual supostamente o indivíduo expressaria sua livre escolha), há gerenciamento e manipulação. Trate-se de consumo de comida, de roupas, de bebidas, de cigarros, de filmes ou programas de televisão, sempre há um poderoso aparato de sugestão em funcionamento, no qual se podem distinguir dois propósitos: primeiro, o aumento constante do desejo no indivíduo por novas mercadorias, e, segundo, o direcionamento desses mesmos desejos rumo aos canais mais lucrativos à indústria. O homem é, assim, transformado em consumidor, o eterno lactente, cujo empenho principal será sempre consumir mais e “melhores” produtos.

Nosso sistema econômico precisa criar homens que se ajustem a suas necessidades, homens que cooperem tranquilamente, homens que queiram consumir cada vez mais. Nosso sistema precisa criar homens cujos gostos sejam padronizados, homens que possam ser facilmente influenciados, homens cujas necessidades possam sempre ser previstas. Nosso sistema tem necessidade de homens que se sintam livres e independentes, mas que se mostrem ao mesmo tempo inclinados a fazer o que se espera deles, homens que se ajustem à máquina social sem conflito, que possam ser guiados sem força, conduzidos sem aparente condutor, que deixem direcionar-se sem outro fim senão o de “agir certo” (1). Não é que a autoridade haja desaparecido, nem sequer que tenha perdido força. O que ocorreu foi a transformação da autoridade aberta, de imposição pela força física, em autoridade anônima de persuasão e sugestão. Em outras palavras, a fim de que se mostre adaptável, o homem moderno se vê obrigado a alimentar a ilusão de que tudo é feito com seu consentimento, ainda quando tal consentimento lhe é extraído por sutil manipulação. Seu consentimento é obtido, por assim dizer, pelas costas, sem que disso ele se dê conta.

Esses mesmos artifícios são empregados na educação progressiva. A criança é ainda forçada a engolir a pílula, mas à pílula se adiciona agora uma atrativa camada de açúcar. Pais e professores confundem educação verdadeiramente não autoritária com educação por meio da persuasão e coerção oculta. A educação progressiva tem sido assim adulterada. Por isso, não pôde ainda tornar-se aquilo que se pensava ia tornar-se, nunca podendo encontrar o desenvolvimento que uma vez se pensou fosse encontrar.



(1) Para uma análise mais detalhada da influência de nosso sistema industrial na estrutura do caráter do indivíduo, ver E. Fromm, The Sane Society, Rinehart and Co. Inc., New York, 1955.

Ci vedo dove sono

Ciao, ragazzi/e!!

Primeiro, queria explicar o título desta postagem e do próprio blogue.

Venho acompanhando já há muito um bocado do que se escreve em jornais, revistas, livros, e venho assistindo a filmes, noticiários e documentários. Costumava ouvir muito notícias e entrevistas no rádio, mas agora, ainda que sempre ligue o rádio, sobretudo quando no carro, venho dando preferência para estações como Itapema, na qual se ouve mais música do que papo. Mas enfim sempre ouço o rádio.

E sempre é verdade que ouço/leio muita coisa e, embora entenda que ouvir/ler, sabendo fazê-lo, possa ser uma virtude, não há cristo que se contente somente com isso. Creio estar em nossa natureza, se me permitem os filósofos falar assim, uma certa urgência de expressar-nos.

Quero, pois, também "falar", e isso não porque pense saber mais que os outros (tenho a esta altura do campeonato já uma ideia bastante clara de minha ignorância), mas antes porque as besteiras que inevitavelmente acabe dizendo não serão decerto muito piores do que aquelas que venho recebendo.

"Vejo-nos do lugar em que me encontro" pareceu-me, por isso, um bom título para um blogue. Se o pus noutra língua, com outras palavras, talvez mais simples, isso não se deve entender como presunção. Busquei apenas certa originalidade, que talvez não tenha conseguido obter. Mas o nome aí está e aí fica, por enquanto.

Enfim, aqui estou.

Era isso.

Abraço!

Conrado