LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

sábado, 18 de junho de 2011

Um prefácio de Erich Fromm (2a parte)

II

O sistema de A. S. Neill é uma abordagem radical para a educação infantil. Na minha opinião, seu livro é de grande importância, porque representa o verdadeiro princípio da educação sem medo. Em Summerhill, a autoridade não mascara um sistema de manipulação.

Summerhill, o livro, não faz uma explanação detalhada de uma teoria. Relata tão somente a experiência factual de quase 40 anos. O autor sustenta que “a liberdade funciona”.

Os princípios que fundamentam o sistema de Neill são apresentados neste livro de modo simples e inequívoco. Vejamos, resumidamente, quais sejam.

1. Neill mantém uma fé inabalável “na bondade da criança”. Ele acredita que comumente a criança não nasce incapaz, nem covarde ou um autômato sem alma; ao contrário, normalmente a criança mostra grandes potencialidades para amar a vida e interessar-se por ela.

2.O propósito da educação – na verdade o propósito da própria vida – é trabalhar com alegria e encontrar a felicidade. Entende Neill que a felicidade significa interessar-se pela vida, ou, como eu mesmo gosto de dizer, responder à vida não apenas com o cérebro simplesmente, mas com a personalidade inteira.

3.Em educação, o desenvolvimento intelectual não é suficiente. A educação deve ser tanto intelectual quanto emocional. Na sociedade moderna, encontra-se uma crescente separação entre intelecto e sentimento. As experiências do homem hoje são sobretudo experiências de pensamento em vez de uma imediata apreensão do que seu coração sente, seus olhos veem e seus ouvidos ouvem. Com efeito, essa separação entre intelecto e sentimento vem conduzindo o homem a um estado mental próximo da esquizoidia, no qual ele se vê quase incapacitado de experienciar o que não esteja diretamente relacionado ao pensamento.

4.A educação deve ajustar-se às necessidades psíquicas da criança e às suas capacidades. A criança não é um ser altruísta. Ela ainda não ama com o amor maduro de um adulto. É um erro esperar da criança algo que ela só poderá mostrar de forma hipócrita. O altruísmo se desenvolve depois da infância.

5.A punição e a disciplina, imposta de modo dogmático, acabam criando o medo, e este engendra a hostilidade, que pode até nem ser consciente, mas acarreta em todo caso uma paralisia do empenho e da autenticidade de sentimento. O ato de extensivamente disciplinar a criança é prejudicial por impedir um desenvolvimento psíquico saudável.

6.Liberdade não significa permissividade. Esse princípio muito importante, enfatizado por Neill, quer dizer que o respeito entre os indivíduos deve ser mútuo. Um professor não usa força contra uma criança, nem tem a criança o direito de usar de força contra um professor. Uma criança não deve impor-se a um adulto apenas porque é criança, nem deve valer-se de pressão nas muitas maneiras através das quais as crianças o fazem.

7.Muito próxima do princípio acima está a necessidade de sinceridade verdadeira da parte do professor. O autor garante nunca haver mentido para uma criança em seus 40 anos de trabalho em Summerhill. Quem quer que leia este livro ficará convencido de que tal afirmação, que pode até soar como presunção, não passa da simples verdade.

8.O desenvolvimento humano saudável torna necessário que a criança acabe rompendo os laços primários que a conectam com seus pais, ou com os substitutos destes mais tarde na sociedade, de modo a que ela se torne verdadeiramente independente. É preciso que a criança aprenda a encarar o mundo como um indivíduo. Deve aprender a encontrar sua segurança não em um vínculo simbiótico, mas em sua própria capacidade de entender o mundo de modo intelectual, emocional e artístico. Deve usar todo o seu poder para encontrar-se em união com o mundo, em vez de buscar segurança através da submissão ou dominação.

9.Sentimentos de culpa têm primeiramente a função de sujeitar a criança à autoridade. Sentimentos de culpa são um obstáculo à independência. Eles dão início a um ciclo que oscila constantemente entre rebeldia, arrependimento, submissão e nova rebeldia. A culpa, como concebida pela maioria das pessoas em nossa sociedade, não é originariamente uma reação à voz da consciência, mas essencialmente o acordar da desobediência contra a autoridade e o consequente medo de represália. Pouco importa se a punição é física ou a recusa de amor, ou ainda se acaba fazendo com que a criança se sinta um estranho. Todo sentimento de culpa cria o medo, e o medo engendra a hostilidade e a hipocrisia.

10.Summerhill não oferece educação religiosa. Isso, porém, não quer dizer que Summerhill não se interesse pelo que poderíamos chamar de valores humanísticos básicos. Neill observa sucintamente que “a batalha não é entre aqueles que creem em teologia e aqueles que não creem em teologia; ela se dá antes entre aqueles que acreditam na liberdade humana e aqueles que acreditam na supressão da liberdade humana”. E continua: “Algum dia uma nova geração deixará de aceitar a obsoleta religião e mitos de hoje. Quando a nova religião vier, não mais se aceitará a ideia de que o homem nasceu pecador. Uma nova religião louvará a Deus ao fazer o homem feliz.”

Neill é um crítico da sociedade dos dias atuais. Ele enfatiza que o tipo de pessoa que se desenvolve numa tal sociedade é o homem-massa. “Vivemos numa sociedade insana” e “a maioria de nossas práticas religiosas são imposturas”. Muito logicamente, o autor é um internacionalista, mantendo a firme e inflexível posição de que a prontidão para a guerra é um atavismo bárbaro da raça humana.

Com efeito, Neill não tenta educar crianças para que se ajustem à ordem existente, mas se empenha em educá-las para que se transformem em seres humanos felizes, em homens e mulheres cujos valores não são ter muito, nem usar muito, mas antes ser muito. Neill é um realista. Ele entende que, embora as crianças que educa não venham necessariamente a tornar-se pessoas bem-sucedidas num sentido mundano, elas terão sempre adquirido um senso de genuinidade que efetivamente as protegerá de tornarem-se marginalizadas ou mendigos famélicos. O autor toma partido diante da distinção que se faz entre desenvolvimento humano integral e completo sucesso mercadológico, sendo inflexivelmente honesto no modo como prossegue seu caminho rumo ao objetivo escolhido.

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