LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

domingo, 12 de junho de 2011

Um prefácio de Erich Fromm

Olá, amigos!

O texto a seguir é a primeira parte de um prefácio que o psicanalista alemão Erich Fromm escreveu para uma coletânea de textos de A. S. Neill, o criador da escola inglesa Summerhill, publicada nos Estados Unidos pela Hart Publishing Company em 1960, sob o título SUMMERHILL: A RADICAL APPROACH TO CHILD REARING (algo como Summerhill: uma abordagem radical para a educação infantil). O livro, achei-o num sebo em Porto Alegre e é uma de minhas leituras do momento. Trata-se daquelas coisas maravilhosas que só encontramos nos anos 60. Atuais ou não, sempre serão, penso, relevantes, já que nos fazem refletir.

Traduzi o texto meio que às pressas (poucas coisas fazemos hoje que não sejam às carreiras, não é?), mas acho que se pode entendê-lo convenientemente. A sequência (há mais duas partes) vem em postagens futuras, deus querendo e o diabo deixando.

Abraço e boa leitura!

Conrado

I.

Durante o século XVIII, ideias de liberdade, democracia e autodeterminação foram proclamadas por filósofos progressistas, e já antes da primeira metade do século XIX essas ideias foram usadas no campo da educação. O princípio básico de tal autodeterminação foi a substituição da autoridade pela liberdade, ensinando a criança sem o uso da força, valendo-se tão somente de sua curiosidade e necessidades espontâneas, fazendo-a, enfim, interessar-se pelo mundo a seu redor. Essa atitude deu início à educação progressiva, revelando-se, assim, um importante passo no desenvolvimento humano.

Contudo, os resultados desse novo método não demoraram a mostrar-se decepcionantes, tanto que, nos últimos anos, uma crescente reação à educação progressiva veio se estabelecendo. Hoje, muitas pessoas acreditam que a teoria que dá sustentação à educação progressiva está incorreta, devendo por isso simplesmente ser descartada. Há hoje, inclusive, um considerável movimento em ação requerendo cada vez mais disciplina e até mesmo uma campanha no sentido de permitir que os professores voltem a punir fisicamente seus alunos.

Talvez o fator mais importante nessa reação à educação progressiva seja o notável sucesso no ensino conseguido na União Soviética. Lá os métodos antiquados de autoritarismo são usados a toda força, e os resultados, se considerarmos o conhecimento, parecem indicar que deveríamos mesmo voltar à velha disciplina e esquecer-nos da liberdade infantil.

Estaria de fato equivocada a ideia de educação sem o uso do constrangimento físico? Ainda que a ideia em si não esteja errada, como se pode explicar seu relativo fracasso?

Creio que a ideia de liberdade para as crianças não esteja errada, e sim que tal ideia tenha quase sempre sido deturpada. Mas, para que possamos discutir esse assunto de modo claro, será necessário antes entendermos a natureza da liberdade. E para que possamos fazê-lo, precisamos compreender a diferença entre autoridade aberta e autoridade anônima.

A autoridade aberta é exercida direta e explicitamente. A pessoa com autoridade fala diretamente àquela que lhe está sujeita: “Você deve fazer isso. Se não fizer, sofrerá tais e tais sanções”. A autoridade anônima, por sua vez, tende a esconder que esteja valendo-se de força impositiva. Ela finge não haver autoridade alguma, fazendo de conta que tudo ocorre com o consentimento do indivíduo. Se o professor do passado dizia ao Joãozinho: “Você deve fazer isso ou vai ser punido”, o professor hoje diz algo como “Tenho certeza de que você vai gostar de fazer isso”. Neste caso, a sanção por desobediência não será mais a punição corporal, mas antes a face desgostosa dos pais ou, o que é ainda pior, o sentimento que invade o aluno de não achar-se “ajustado”, de não estar agindo como os demais. A autoridade aberta usava a imposição física; a autoridade anônima emprega a manipulação psíquica.

A passagem da autoridade aberta do século XIX para a autoridade anônima do século XX se deveu às necessidades organizacionais de nossa moderna sociedade industrial. A concentração de capital levou à formação de empresas gigantes, gerenciadas por burocracias hierarquicamente organizadas. Em enormes conglomerações, operários e funcionários de escritórios trabalham juntos, cada indivíduo sendo uma parte, como que uma peça de uma vasta e organizada máquina de produção, a qual, para que possa funcionar, precisa mover-se suavemente e sem jamais interromper-se. Numa tal organização de produção, o indivíduo é gerenciado e manipulado.

Também na esfera do consumo (na qual supostamente o indivíduo expressaria sua livre escolha), há gerenciamento e manipulação. Trate-se de consumo de comida, de roupas, de bebidas, de cigarros, de filmes ou programas de televisão, sempre há um poderoso aparato de sugestão em funcionamento, no qual se podem distinguir dois propósitos: primeiro, o aumento constante do desejo no indivíduo por novas mercadorias, e, segundo, o direcionamento desses mesmos desejos rumo aos canais mais lucrativos à indústria. O homem é, assim, transformado em consumidor, o eterno lactente, cujo empenho principal será sempre consumir mais e “melhores” produtos.

Nosso sistema econômico precisa criar homens que se ajustem a suas necessidades, homens que cooperem tranquilamente, homens que queiram consumir cada vez mais. Nosso sistema precisa criar homens cujos gostos sejam padronizados, homens que possam ser facilmente influenciados, homens cujas necessidades possam sempre ser previstas. Nosso sistema tem necessidade de homens que se sintam livres e independentes, mas que se mostrem ao mesmo tempo inclinados a fazer o que se espera deles, homens que se ajustem à máquina social sem conflito, que possam ser guiados sem força, conduzidos sem aparente condutor, que deixem direcionar-se sem outro fim senão o de “agir certo” (1). Não é que a autoridade haja desaparecido, nem sequer que tenha perdido força. O que ocorreu foi a transformação da autoridade aberta, de imposição pela força física, em autoridade anônima de persuasão e sugestão. Em outras palavras, a fim de que se mostre adaptável, o homem moderno se vê obrigado a alimentar a ilusão de que tudo é feito com seu consentimento, ainda quando tal consentimento lhe é extraído por sutil manipulação. Seu consentimento é obtido, por assim dizer, pelas costas, sem que disso ele se dê conta.

Esses mesmos artifícios são empregados na educação progressiva. A criança é ainda forçada a engolir a pílula, mas à pílula se adiciona agora uma atrativa camada de açúcar. Pais e professores confundem educação verdadeiramente não autoritária com educação por meio da persuasão e coerção oculta. A educação progressiva tem sido assim adulterada. Por isso, não pôde ainda tornar-se aquilo que se pensava ia tornar-se, nunca podendo encontrar o desenvolvimento que uma vez se pensou fosse encontrar.



(1) Para uma análise mais detalhada da influência de nosso sistema industrial na estrutura do caráter do indivíduo, ver E. Fromm, The Sane Society, Rinehart and Co. Inc., New York, 1955.

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