O texto a seguir, cujo título é o que vai aí acima, é do autor italiano Italo Calvino (1923-1985). É a forma escrita de uma conferência lida pelo autor no Institute for the Humanities da Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Foi publicado no mesmo ano no "The New York Review of Books" e, em 1985, na revista "Letteratura Internazionale". A versão de que disponho é aquela que se encontra às páginas 114-125 do livro Mondo scritto e mondo non scrito (Milão: Oscar Mondadori, 2002).
Os leitores que se interessarem em ter o texto original, sobretudo aqueles que, como Sandra Dall'Onder, Deise Quintana e Raquel Benvenutti (professoras da ACIRS), conhecem muito melhor do que eu a língua italiana, escrevam-me, que o tenho digitalizado. Agradeceria se me apontassem erros, de modo que possa sempre melhorar esta tradução.
Publico-o em duas partes, porque há leitores que já me reclamaram da extensão dos textos aqui publicados. (Ah! leitores de pouca fé! Talvez, muito mais provável, de pouco tempo mesmo.)
Vamos ao Calvino.
Pertenço
àquela parte da humanidade – uma minoria em escala planetária,
mas, creio eu, uma maioria entre o meu público – que passa grande
parte de suas horas de vigília num mundo especial, um mundo feito de
linhas horizontais, no qual as palavras se sucedem uma após a outra,
em que cada frase e cada parágrafo ocupam seu lugar estabelecido: um
mundo que pode ser muito rico, talvez ainda mais rico do que aquele
não escrito, mas que em todo caso requer um ajustamento especial
para que nos situemos em seu interior. Quando me desprendo do mundo
escrito para encontrar meu lugar no outro, naquele que costumamos
chamar de o mundo,
feito
de
três
dimensões,
cinco
sentidos,
povoado
de
nossos
semelhantes,
isso
para mim equivale
sempre a
repetir
o
trauma
do
nascimento,
a
dar
forma
de
realidade
inteligível
a
um
conjunto
de
sensações
confusas,
a
escolher
uma
estratégia
para
fazer
face
ao
inesperado
sem
ser
destruído.
Esse
novo
nascimento
se
faz
sempre acompanhar
de
ritos
especiais,
que
significam
o
ingresso
numa
vida
diversa:
por
exemplo,
o
rito
de
pôr
os
óculos,
uma
vez
que,
sendo
míope,
leio
sem
eles,
ao
passo
que
para
a
maioria
presbita
é
o
rito
oposto
que
se
impõe,
ou
seja,
retirar
os
óculos
que
se
usam
apenas
para
a leitura.
Cada
rito
de
passagem
corresponde
a
uma
mudança
de
atitude
mental:
quando
leio,
cada
frase
deve
ser
compreendida,
ao
menos
em
seu
significado
literal,
devendo
pôr-me
em
condições
de
formular
um
juízo:
o
que
li
é
verdadeiro
ou
falso,
certo
ou
errado,
agradável
ou
não.
Na
vida
ordinária,
ao
contrário,
se
apresentam
sempre
inúmeras
circunstâncias
que
fogem
a
meu
entendimento,
desde
as
mais
gerais
até
as
mais
banais:
encontro-me
com
frequência
frente
a
situações
sobre
as
quais
não
saberia
pronunciar-me,
sobre
as
quais
prefiro
suspender
o
julgamento.
Enquanto
espero
que
o
mundo
não
escrito
se
esclareça
a
meus
olhos,
há
sempre
uma
página
escrita
ao
alcance
da
mão,
na
qual
posso
voltar
a
imergir;
e
me
apresso
a
fazê-lo,
com
a
maior
satisfação:
nesta
ao
menos,
ainda
que
consiga
compreender
tão
somente
uma
pequena
parte
do
conjunto,
posso
sempre
cultivar
a
ilusão
de
ter
tudo
sob
controle.
Creio
que
mesmo
na
minha
juventude
as
coisas
tenham sido assim,
mas
naquela
época
tinha
eu a
ilusão
de
que
mundo
escrito
e
mundo
não
escrito
se
iluminassem
reciprocamente, que
as
experiências
de
vida
e
as
experiências
de
leitura
fossem
de
certo
modo
complementares
e
que
a
cada
passo
avançado
num
campo
correspondesse
um
passo
à
frente
no
outro.
Hoje
posso
dizer
que
do
mundo
escrito
conheço
já
o bastante:
no
interior
dos
livros,
a
experiência
é
sempre
possível,
mas
seu
alcance
não
se
estende
além
da
margem
branca
da
página.
Em
contrapartida,
o
que
sucede
no
mundo
que
me
circunda
não
acaba
de
surpreender-me,
de
espantar-me,
de
desorientar-me. Tenho
assistido
a
muitas
mudanças
na
minha
vida,
no
vasto
mundo,
na
sociedade,
e
a
muitas
mudanças
até
em
mim
mesmo;
porém,
não
consigo
prever
nada,
nem
no que se refira a
mim mesmo,
nem
no que diga respeito às
pessoas
que
conheço,
nem,
muito
menos,
quanto ao
gênero
humano.
Não
saberia
prever
as
relações
futuras
entre
os
sexos,
entre
as
gerações,
os
desenvolvimentos
futuros
da
sociedade,
das
cidades
e
das
nações,
que
tipo
de
paz
haverá
ou
que
tipo
de
guerra,
que
coisa
significará
o
dinheiro,
quais
objetos
de
uso
cotidiano
desaparecerão
e
quais
novos
aparecerão,
que
tipo
de
veículos
e
de
maquinário
se
usarão,
qual
será
o
futuro
do
mar,
dos
rios,
dos
animais,
das
plantas.
Sei
bem
que
compartilho
essa
ignorância
com
aqueles
que,
ao
contrário,
pretendem
saber:
economistas,
sociólogos,
políticos;
mas
o
fato
de
não
encontrar-me
sozinho
nessa
ignorância
não
me
serve
de
consolo
algum.
Pode
dar-me
algum
consolo
o
pensamento
de
que
a
literatura
sempre
compreendeu
alguma
coisa
mais
que
as
outras
disciplinas,
mas
isso
me
faz
recordar
que
os
antigos
viam
nas
letras
uma
escola
de
sabedoria,
e
então
me
dou
conta
de
quanto
hoje
toda
ideia
de
sabedoria
seja
inatingível.
Neste
ponto
o
leitor
me
perguntará:
se
dizes
que
teu
verdadeiro
mundo
é
a
página
escrita,
se
apenas
aí
te
sentes
à
vontade,
por
que
hás de sair então desse
mundo,
por
que
tens
de
aventurar-te
neste
vasto
mundo
que
não
estás
em
condições
de
dominar?
A
resposta
é
simples:
para
escrever.
Porque
sou
um
escritor.
O
que
se
espera
de
mim
é
que
eu
olhe
em
torno
a
mim
e
capture
rápidas
imagens
do
que
sucede,
para
em
seguida
debruçar-me
sobre
minha
escrivaninha
e
retomar
o
trabalho.
É
para
recolocar
em
movimento
a
minha
fábrica
de
palavras
que
devo
extrair
novo
combustível
dos
poços
do
não
escrito.
Mas
procuremos
ver
melhor
como
andam as
coisas.
É
assim
mesmo
que
ocorre?
As
principais
correntes
filosóficas
do
momento
dizem
que
não,
que
nada
disso
é
verdadeiro.
A
mente
do
escritor
é
obcecada pelas
contrastantes
posições
de
duas
correntes
filosóficas.
A
primeira
diz
que
o
mundo
não
existe;
existe
apenas
a
linguagem.
A
segunda
diz
que
a
linguagem
comum
não
tem
sentido;
o
mundo
é
inefável.
De
acordo
com
a
primeira,
a
espessura
da
linguagem
se
eleva
acima
de
um
mundo
feito
de
sombra;
de
acordo
com
a
segunda,
é
o
mundo
que
se
põe
altaneiro,
como
uma
muda
esfinge
de
pedra,
sobre
um
deserto
de
palavras
que
se
parecem
à
areia
que
o
vento
leva.
A
primeira
corrente
estabeleceu
suas
fontes
principais
na
Paris
dos
últimos
vinte
e
cinco
anos;
a
segunda
decorre
do
início
do
século,
partindo
de
Viena,
e,
passando por
várias
transmigrações,
readquiriu
atualidade
em
anos
recentes
mesmo
na
Itália.
Ambas
as
filosofias
têm
em
si
fortes
razões.
Ambas
representam
um
desafio
ao
escritor:
a
primeira
exige
o
uso
de
uma
linguagem
que
responda
apenas
a
si
mesma,
às
suas
leis
internas;
a
segunda,
o
uso
de
uma
linguagem
que
possa
fazer
frente
ao
silêncio
do
mundo.
Ambas
exercem
sobre
mim
seu
fascínio
e
sua
influência.
Isso
significa
que
acabo
não
seguindo
uma
nem
outra,
não
crendo
numa
nem
na
outra.
Em
que
creio,
então?
Vejamos
um
momento
se
posso
tirar
alguma
vantagem
dessa
difícil
situação.
Antes
de
tudo,
se
sentimos
assim
intensamente
a
incompatibilidade
entre
o
escrito
e
o
não
escrito,
é
porque
somos
muito
mais
conscientes
do
que
seja
o
mundo
escrito:
não
podemos
esquecer-nos
nem
mesmo
por
um
átimo
de
que
é
um
mundo
feito
de
palavras,
usadas
de
acordo
com
as
técnicas
e
as
estratégias
próprias
da
linguagem,
conforme
os
sistemas
especiais
em
que
se
organizam
os
significados
e
as
relações
entre
significados.
Temos
consciência
de
que,
quando
nos
contam
uma
história
(e
quase
todos
os
textos
escritos
contam
uma
história,
mesmo
um
ensaio
filosófico,
mesmo
um
balanço
de
sociedade
anônima,
mesmo
uma
receita
de
cozinha),
essa
história
é
mobilizada
a
partir
de
um
mecanismo,
similar
aos
mecanismos
de
toda e qualquer
história.
Esse
é
um
grande
passo
à
frente:
hoje
temos
condições
de
evitar
muitas
confusões
entre
o
que
é
linguístico
e
o
que
não
é,
e
assim
podemos
ver
claramente
as
relações
que
se
interpõem
entre
os
dois
mundos.
Não
me
resta
senão
fazer
a
contraprova
e
verificar
que
o
mundo
externo
está
sempre
lá
e
não
depende
das
palavras,
sendo
antes
irredutível
às
palavras,
não
havendo
linguagem
ou
escritura
que
possa
exauri-lo.
Basta-me
voltar
as
costas
às
palavras
depositadas
nos
livros,
enfiar-me
no
mundo
de
fora,
esperando
alcançar
o
coração
do
silêncio,
o
verdadeiro
silêncio
cheio
de
significado...
Mas
qual
é
o
caminho
para
alcançá-lo?
Há
quem,
para
ter
um
contato
com
o
mundo
de
fora,
se
limite
a
comprar
um
jornal
toda
manhã.
Eu
não
sou
assim
ingênuo.
Sei
que
dos
jornais
posso
extrair
apenas
uma
leitura
do
mundo
feita
por
outros,
ou
antes
feita
por
uma
máquina
anônima,
especializada
em
escolher
da
poeira
infinita
de
eventos
aqueles
que
podem
ser
selecionados
como
“notícia”.
Outros,
a
fim
de
fugir
do
mundo
escrito,
ligam
a
televisão.
Mas
eu
sei
que
todas
as
imagens,
mesmo
aquelas
colhidas
ao
vivo,
fazem
parte
de
um
discurso
construído,
exatamente
iguais
àquelas
dos
jornais.
Portanto,
sem
comprar
o
jornal,
sem
ligar
a
televisão,
me
limitarei
a
sair
e
andar
a
passear.
Mas
cada
coisa
que
vejo
nas
ruas
da
cidade
tem
já
seu
lugar
no
contexto
da
informação
homogeneizada.
Esse
mundo
que
vejo,
aquele
que
se
reconhece
normalmente
como
o mundo,
se
apresenta
a
meus
olhos
– pelo
menos
em
grande
parte
– já
conquistado,
colonizado
pelas
palavras, é
um
mundo
que
traz consigo uma
pesada
crosta
de
discurso.
Os
fatos
de
nossa
vida
estão
já
classificados,
julgados,
comentados, e
antes
mesmo
que
ocorram.
Vivemos
num
mundo
em
que
tudo
já está
lido
antes
mesmo
que
venha
a
existir.
Não
apenas
tudo
o
que
vemos,
mas
os
nossos
próprios
olhos
estão
saturados
de
linguagem
escrita. O hábito da leitura
transformou ao longo dos séculos o homo sapiens
em homo legens, mas
esse homo legens não
é necessariamente mais sapiente do que antes. O homem que não lia
sabia ver e ouvir uma quantidade de coisas que nós já não
percebemos: as pegadas do animal que caçava, os sinais da chuva ou
do vento que se aproximava; e ele reconhecia as horas do dia a partir
da sombra de uma árvore e as da noite ao considerar a altura das
estrelas sobre o horizonte. E quanto à audição, o olfato, o
paladar, o tato, a sua superioridade sobre nós não pode ser posta
em dúvida.
Isso dito, é preciso esclarecer que não venho aqui propor o retorno
ao analfabetismo a fim de que se recupere o saber das tribos
paleolíticas. Lastimo tudo o que possamos haver pedido, mas não me
esqueço jamais de que os ganhos superam as perdas. O que busco
entender é o que podemos fazer hoje.
(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)