LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO (1ª parte)

O texto a seguir, cujo título é o que vai aí acima, é do autor italiano Italo Calvino (1923-1985). É a forma escrita de uma conferência lida pelo autor no Institute for the Humanities da Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Foi publicado no mesmo ano no "The New York Review of Books" e, em 1985, na revista "Letteratura Internazionale". A versão de que disponho é aquela que se encontra às páginas 114-125 do livro Mondo scritto e mondo non scrito (Milão: Oscar Mondadori, 2002). 

Os leitores que se interessarem em ter o texto original, sobretudo aqueles que, como Sandra Dall'Onder, Deise Quintana e Raquel Benvenutti (professoras da ACIRS), conhecem muito melhor do que eu a língua italiana, escrevam-me, que o tenho digitalizado. Agradeceria se me apontassem erros, de modo que possa sempre melhorar esta tradução.

Publico-o em duas partes, porque há leitores que já me reclamaram da extensão dos textos aqui publicados. (Ah! leitores de pouca fé! Talvez, muito mais provável, de pouco tempo mesmo.)

Vamos ao Calvino.

Pertenço àquela parte da humanidade – uma minoria em escala planetária, mas, creio eu, uma maioria entre o meu público – que passa grande parte de suas horas de vigília num mundo especial, um mundo feito de linhas horizontais, no qual as palavras se sucedem uma após a outra, em que cada frase e cada parágrafo ocupam seu lugar estabelecido: um mundo que pode ser muito rico, talvez ainda mais rico do que aquele não escrito, mas que em todo caso requer um ajustamento especial para que nos situemos em seu interior. Quando me desprendo do mundo escrito para encontrar meu lugar no outro, naquele que costumamos chamar de o mundo, feito de três dimensões, cinco sentidos, povoado de nossos semelhantes, isso para mim equivale sempre a repetir o trauma do nascimento, a dar forma de realidade inteligível a um conjunto de sensações confusas, a escolher uma estratégia para fazer face ao inesperado sem ser destruído.

Esse novo nascimento se faz sempre acompanhar de ritos especiais, que significam o ingresso numa vida diversa: por exemplo, o rito de pôr os óculos, uma vez que, sendo míope, leio sem eles, ao passo que para a maioria presbita é o rito oposto que se impõe, ou seja, retirar os óculos que se usam apenas para a leitura.

Cada rito de passagem corresponde a uma mudança de atitude mental: quando leio, cada frase deve ser compreendida, ao menos em seu significado literal, devendo pôr-me em condições de formular um juízo: o que li é verdadeiro ou falso, certo ou errado, agradável ou não. Na vida ordinária, ao contrário, se apresentam sempre inúmeras circunstâncias que fogem a meu entendimento, desde as mais gerais até as mais banais: encontro-me com frequência frente a situações sobre as quais não saberia pronunciar-me, sobre as quais prefiro suspender o julgamento.

Enquanto espero que o mundo não escrito se esclareça a meus olhos, sempre uma página escrita ao alcance da mão, na qual posso voltar a imergir; e me apresso a fazê-lo, com a maior satisfação: nesta ao menos, ainda que consiga compreender tão somente uma pequena parte do conjunto, posso sempre cultivar a ilusão de ter tudo sob controle.

Creio que mesmo na minha juventude as coisas tenham sido assim, mas naquela época tinha eu a ilusão de que mundo escrito e mundo não escrito se iluminassem reciprocamente, que as experiências de vida e as experiências de leitura fossem de certo modo complementares e que a cada passo avançado num campo correspondesse um passo à frente no outro. Hoje posso dizer que do mundo escrito conheço o bastante: no interior dos livros, a experiência é sempre possível, mas seu alcance não se estende além da margem branca da página. Em contrapartida, o que sucede no mundo que me circunda não acaba de surpreender-me, de espantar-me, de desorientar-me. Tenho assistido a muitas mudanças na minha vida, no vasto mundo, na sociedade, e a muitas mudanças até em mim mesmo; porém, não consigo prever nada, nem no que se refira a mim mesmo, nem no que diga respeito às pessoas que conheço, nem, muito menos, quanto ao gênero humano. Não saberia prever as relações futuras entre os sexos, entre as gerações, os desenvolvimentos futuros da sociedade, das cidades e das nações, que tipo de paz haverá ou que tipo de guerra, que coisa significará o dinheiro, quais objetos de uso cotidiano desaparecerão e quais novos aparecerão, que tipo de veículos e de maquinário se usarão, qual será o futuro do mar, dos rios, dos animais, das plantas. Sei bem que compartilho essa ignorância com aqueles que, ao contrário, pretendem saber: economistas, sociólogos, políticos; mas o fato de não encontrar-me sozinho nessa ignorância não me serve de consolo algum.

Pode dar-me algum consolo o pensamento de que a literatura sempre compreendeu alguma coisa mais que as outras disciplinas, mas isso me faz recordar que os antigos viam nas letras uma escola de sabedoria, e então me dou conta de quanto hoje toda ideia de sabedoria seja inatingível.

Neste ponto o leitor me perguntará: se dizes que teu verdadeiro mundo é a página escrita, se apenas te sentes à vontade, por que hás de sair então desse mundo, por que tens de aventurar-te neste vasto mundo que não estás em condições de dominar? A resposta é simples: para escrever. Porque sou um escritor. O que se espera de mim é que eu olhe em torno a mim e capture rápidas imagens do que sucede, para em seguida debruçar-me sobre minha escrivaninha e retomar o trabalho. É para recolocar em movimento a minha fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não escrito.

Mas procuremos ver melhor como andam as coisas. É assim mesmo que ocorre? As principais correntes filosóficas do momento dizem que não, que nada disso é verdadeiro. A mente do escritor é obcecada pelas contrastantes posições de duas correntes filosóficas. A primeira diz que o mundo não existe; existe apenas a linguagem. A segunda diz que a linguagem comum não tem sentido; o mundo é inefável.

De acordo com a primeira, a espessura da linguagem se eleva acima de um mundo feito de sombra; de acordo com a segunda, é o mundo que se põe altaneiro, como uma muda esfinge de pedra, sobre um deserto de palavras que se parecem à areia que o vento leva. A primeira corrente estabeleceu suas fontes principais na Paris dos últimos vinte e cinco anos; a segunda decorre do início do século, partindo de Viena, e, passando por várias transmigrações, readquiriu atualidade em anos recentes mesmo na Itália. Ambas as filosofias têm em si fortes razões. Ambas representam um desafio ao escritor: a primeira exige o uso de uma linguagem que responda apenas a si mesma, às suas leis internas; a segunda, o uso de uma linguagem que possa fazer frente ao silêncio do mundo. Ambas exercem sobre mim seu fascínio e sua influência. Isso significa que acabo não seguindo uma nem outra, não crendo numa nem na outra. Em que creio, então?

Vejamos um momento se posso tirar alguma vantagem dessa difícil situação. Antes de tudo, se sentimos assim intensamente a incompatibilidade entre o escrito e o não escrito, é porque somos muito mais conscientes do que seja o mundo escrito: não podemos esquecer-nos nem mesmo por um átimo de que é um mundo feito de palavras, usadas de acordo com as técnicas e as estratégias próprias da linguagem, conforme os sistemas especiais em que se organizam os significados e as relações entre significados. Temos consciência de que, quando nos contam uma história (e quase todos os textos escritos contam uma história, mesmo um ensaio filosófico, mesmo um balanço de sociedade anônima, mesmo uma receita de cozinha), essa história é mobilizada a partir de um mecanismo, similar aos mecanismos de toda e qualquer história.

Esse é um grande passo à frente: hoje temos condições de evitar muitas confusões entre o que é linguístico e o que não é, e assim podemos ver claramente as relações que se interpõem entre os dois mundos.

Não me resta senão fazer a contraprova e verificar que o mundo externo está sempre e não depende das palavras, sendo antes irredutível às palavras, não havendo linguagem ou escritura que possa exauri-lo. Basta-me voltar as costas às palavras depositadas nos livros, enfiar-me no mundo de fora, esperando alcançar o coração do silêncio, o verdadeiro silêncio cheio de significado... Mas qual é o caminho para alcançá-lo?

quem, para ter um contato com o mundo de fora, se limite a comprar um jornal toda manhã. Eu não sou assim ingênuo. Sei que dos jornais posso extrair apenas uma leitura do mundo feita por outros, ou antes feita por uma máquina anônima, especializada em escolher da poeira infinita de eventos aqueles que podem ser selecionados comonotícia.

Outros, a fim de fugir do mundo escrito, ligam a televisão. Mas eu sei que todas as imagens, mesmo aquelas colhidas ao vivo, fazem parte de um discurso construído, exatamente iguais àquelas dos jornais. Portanto, sem comprar o jornal, sem ligar a televisão, me limitarei a sair e andar a passear.

Mas cada coisa que vejo nas ruas da cidade tem seu lugar no contexto da informação homogeneizada. Esse mundo que vejo, aquele que se reconhece normalmente como o mundo, se apresenta a meus olhospelo menos em grande parte conquistado, colonizado pelas palavras, é um mundo que traz consigo uma pesada crosta de discurso. Os fatos de nossa vida estão classificados, julgados, comentados, e antes mesmo que ocorram. Vivemos num mundo em que tudoestá lido antes mesmo que venha a existir.

Não apenas tudo o que vemos, mas os nossos próprios olhos estão saturados de linguagem escrita. O hábito da leitura transformou ao longo dos séculos o homo sapiens em homo legens, mas esse homo legens não é necessariamente mais sapiente do que antes. O homem que não lia sabia ver e ouvir uma quantidade de coisas que nós já não percebemos: as pegadas do animal que caçava, os sinais da chuva ou do vento que se aproximava; e ele reconhecia as horas do dia a partir da sombra de uma árvore e as da noite ao considerar a altura das estrelas sobre o horizonte. E quanto à audição, o olfato, o paladar, o tato, a sua superioridade sobre nós não pode ser posta em dúvida.

Isso dito, é preciso esclarecer que não venho aqui propor o retorno ao analfabetismo a fim de que se recupere o saber das tribos paleolíticas. Lastimo tudo o que possamos haver pedido, mas não me esqueço jamais de que os ganhos superam as perdas. O que busco entender é o que podemos fazer hoje.

(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)