LEITORES ASSÍDUOS (ou com vontade de sê-lo)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ensinar de verdade? Quem sabe então: "educar de verdade"?

Amigos leitores:

Este bogue não tem como tema exclusivo a linguagem, embora, dada a formação de seu autor, será possivelmente esse um dos assuntos mais recorrentes.

O leitor Roberto Silva Kun publicou aqui um comentário muito instigante referente ao texto da semana passada,“Língua difícil? – uma reflexão sobre a língua portuguesa e o uso que dela temos feito”, e muito provavelmente tendo também em mente o texto da semana anterior, “Por uma vida melhor”, no qual defendo o livro Por uma vida melhor, distribuído pelo PNLD, que vem injustificadamente, a meu ver, sendo atacado.

De pronto, como é meu costume, redigi uma resposta a suas observações. Contudo, como tal resposta se mostrasse demasiado extensa, decidi publicá-la como o texto desta semana. Deixei lá, como resposta imediata ao Roberto, apenas breve nota informando-o de que procederia assim.

Eis a seguir, portanto, minha resposta ao Roberto. Não republico aqui seu texto, deixando ao leitor interessado o cuidado (possivelmente recomendável) de lê-lo lá onde se encontra, i. é, entre os comentários ao texto da semana passada.


Roberto:

Primeiramente, quero te agradecer a leitura e, claro, o comentário. É evidente que quem escreve quer ser lido, mas, no caso de um blogue, para além da simples leitura, existe essa fantástica possibilidade de comentar o que se lê, de interagir com o autor, que pode (como tenho procurado fazer) responder a seus leitores (que, neste momento, assumem já a condição de autores). Meu blogue não tem ainda dois meses de vida, e eu já estou fascinado por essa oportunidade de não apenas divulgar por escrito o que leio e penso, como também dialogar com meus leitores.

Penso poder entender tua preocupação com os destinos do nosso idioma. Não penses tu que também eu não me preocupe com isso. O simples fato de em duas postagens seguidas eu me haver ocupado dessa temática é, no meu entender, já revelador dessa preocupação.

Teu texto me interessou muito. Procurei, depois de várias leituras, dividi-lo em tópicos e ir buscando responder a cada um deles. Isso talvez alongue esta minha resposta. Que fazer? Assim parecem funcionar as coisas. Peço, portanto, paciência a ti e aos demais leitores, que todos, espero, só faremos desenvolver, como dizes, “um maior e melhor conhecimento” senão de nosso idioma, ao menos de algumas questões a ele pertinentes.

1. “...fico com a impressão de que você não tem interesse em contribuir com a manutenção do idioma”

Tudo depende, Roberto, do que tu entendas por “manutenção”. Tenho todo o interesse de que as pessoas, sobretudo aquelas que estudam português sob minha orientação, não apenas conheçam “mais e melhor” essa língua, mas também aprendam a amá-la tanto quando eu. Ora, amigo, se tu amas algo ou alguém, terás decerto todo o interesse em não deixar de estender-lhe teu suporte, palavra que penso não me equivocar em ver como parte integrante do conceito de “manter”. Fico pensando cá comigo que trecho ou trechos de meu texto ou textos te levou a essa impressão. Quando escrevemos ou falamos iludimo-nos de que aquilo que lá na cabeça tínhamos na origem se revelará tal e qual ao nosso leitor ou ouvinte. Todavia, as coisas não são bem assim, infelizmente. Devo numa passagem ou outra ter me equivocado. Seria demais te pedir que me indicasses tais trechos?

2. “...agora por todos os lados se vê um esforço contrário, tentando enfraquecer a noção de certo e errado, norma culta, regras, etc.”

De fato, Roberto, existe tal esforço. Mas isso pode não ser necessariamente algo ruim. “Certo”, “errado”, “norma culta” e mesmo “regras”, tudo isso são conceitos que estão sendo investigados. Já sabemos, por exemplo, que “certo” e “errado” são classificações relativas. Assim, diremos que tal construção está “certa” ou “errada” consoante o contexto em que se veja inserida. Tu não dirás, por exemplo, que “Tu foi no cinema ontem?” é uma frase “errada” quando dita por um porto-alegrense a outro numa situação informal ou semi-informal, ainda que possivelmente essa sentença deva, em situação idêntica, muito bem ser assim classificada se um lisboeta a tiver usado. (Não sou um especialista em português europeu, mas suponho que nessa variante os verbos ainda mantenham, mesmo em situações informais, a antiga conjugação de segunda pessoa do singular. Talvez me engane.)

A denominação “norma culta”, por sua vez, me soa algo equivocada; pelo menos, um tanto infeliz, já que nos leva a supor que as demais normas sejam desprovidas de cultura, suposição essa demasiado temerária, me parece, pois lança mão, para sustentar-se, de um conceito bastante estreito de cultura.

Quanto a “regras”, é sempre bom ter algum cuidado, porque na gramática “prescritiva” tradicional contam-se a mãos-cheias regras cuja motivação ou é um simples capricho do compilador, ou se baseia num corpus eminentemente literário, bem distante, portanto, do que se verifica tanto na fala quanto na escrita hodierna. Não que não se devam escrever gramáticas que nos auxiliem a ler autores do passado. Nada disso! O que não se pode querer é que gramáticas baseadas apenas em autores clássicos de nossa literatura venham a apresentar-se como “o” modelo para o uso atual. Não é preciso ser um Darwin para entender que as línguas, sendo organismos vivos, se alteram com o passar do tempo. Não fosse isso, ainda diríamos “magistra discipulum amat”, ou algo parecido, em lugar de “a professora gosta do aluno”.

3. “O enriquecimento de nosso idioma está ameaçado, corremos o risco de retroceder.”

Não posso concordar com isso, Roberto! Em língua, não creio que haja passo para trás, ou pelo menos não enquanto houver falantes/usuários dela. Se não investirmos em boa educação, em leitura, se não alcançarmos poder, responsabilidade e condições dignas às camadas mais desfavorecidas de nossa população, decerto andaremos para trás. Contudo, ainda que isso venha a acontecer, nossa língua seguirá seu caminho incólume. Incólume, digo, mas não inalterada.

Há quem morra de medo de que o português empobreça morfologicamente. Não creio conhecer língua que tenha sido mais alterada morfologicamente do que o inglês depois da “invasão” normanda. Ninguém dirá hoje, contudo, que, pobre morfologicamente embora, não seja o inglês uma das línguas mais eficientes e bem-sucedidas no Ocidente. “Ah, mas isso se deve ao Império Britânico, ao imperialismo americano, etc...”, dirá alguém. Pois justamente! Da língua em si dificilmente diremos sem preconceito ser ela “pobre” ou “rica”, ou “feia” ou “bonita, ou então “isso” ou “aquilo”: a língua será sempre aquilo que o povo que a usa será. Portanto, demos corda, por assim dizer, ao brasileiro e deixemos nosso português seguir seu próprio caminho!

4. “É uma pena, porém, que aqueles que deveriam lutar para proteger os avanços históricos e ampliá-los tornem-se cúmplices do empobrecimento da língua.”

Se me incluis entre “aqueles que deveriam lutar” etc., como me parece que fazes, não deixo de ficar lisonjeado. Recebo de ti como que o reconhecimento de encontrar-me numa posição de algum poder. Possivelmente, enquanto professor de língua portuguesa, de fato eu goze de algum “poderzinho” nesse sentido. Contudo, não vejo minha atuação como aquela de um agente, ainda que secundário (“cúmplice”), do “empobrecimento da língua”. Não vejo, e aí, me parece, discordamos efetivamente, não vejo, digo, a nossa língua num processo de empobrecimento. Há sem dúvida transformações, mas essas não significam necessariamente empobrecimento.

Poderá alguém pensar que, por usarmos hoje uma conjugação com menos concordâncias do que faziam nossos antepassados (e será que todos as faziam?), estaríamos de alguma forma “empobrecendo” nossa língua. Assim, em lugar de “eu canto, tu cantas, ele canta, nós cantamos, vós cantais e eles cantam”, temos hoje “eu canto, tu canta, ele canta, a gente canta, vocês cantam, eles cantam”, ou seja, em lugar de seis formas distintas para o verbo, temos hoje frequentemente apenas três. Há quem decerto pense que isso seja empobrecimento. De fato, morfologicamente essa alteração pode ser assim chamada. Mas isso não significa “empobrecimento” no sentido de algo contra que devamos lutar, pois a riqueza em termos semânticos e também sintáticos dessas formas pode muito bem manter-se inalterada. O inglês conta com apenas duas formas para o verbo no presente do indicativo e o francês três. E falo aqui do inglês e do francês “cultos”. Ora, diremos que essas são línguas pobres!? Dificilmente.

Também quanto à concordância nominal, se compararmos nossa língua com o francês e o inglês “cultos”, veremos que nestas ou de regra apenas o primeiro elemento do sintagma nominal se altera, ou apenas o substantivo se altera. No primeiro caso, encontra-se o francês, em que o plural de, por exemplo, “le garçon brésilien” será “les garçons brésiliens”. Aqui, embora se verifique um “s” de plural em “garçon” e “brésilien”, tais palavras são de fato pronunciadas como se não o tivessem, ou seja, são pronunciadas exatamente como o são no singular. Apenas o artigo “les” indicará o plural de todo o sintagma e ainda assim não em razão do “s”, que, neste caso, não é pronunciado, e sim pela qualidade da vogal, i. é, o “e” de “le” é fonologicamente distinto do “e” de “les” (o que, diga-se incidentalmente, nos mostra a diferença entre fala e escrita também no francês). Aliás, é esse fenômeno exatamente aquele que observam os autores do livro Por uma vida melhor estar se verificando no português. Observação, diga-se a verdade, que não vem deles, que são autores de livros didáticos, mas de pesquisas feitas em programas de pós-graduação de universidades muito bem conceituadas.

No segundo caso, temos exemplos bem conhecidos do inglês em sintagmas como “the Brazilian boy”, cujo plural será “the Brazilian boys”. Observe-se que o único elemento a pluralizar-se morfologicamente é “boy”. Assim, quando alguém se assusta com os rumos da língua portuguesa quando ouve dizerem coisas como “as cadeira amarela”, e o faz porque imagina haver um empobrecimento talvez de ordem “cognitiva” em questão, julgo que falta a essa pessoa deter-se um pouco mais a considerar os fenômenos linguísticos, e nesse sentido o estudo de outras línguas pode nos trazer muitos esclarecimentos sobre nossa própria língua.

Mas, voltando aos exemplos dados acima, diremos nós que o francês e o inglês são línguas pobres? Que sua morfologia tenha se empobrecido ao longo do tempo, isso não há como negar. Porém, tal empobrecimento não significou de modo algum depauperação, involução ou perecimento; antes pelo contrário!

Compreender essas mudanças em nossa e em outras línguas, ver em que medida se vêm realizando efetivamente no uso “real” (tanto escrito quanto falado) que de nosso português fazemos, discutir essas questões em sala de aula, instigar os alunos a que pesquisem sobre o idioma que usamos, nada disso me parecem atividades de um “cúmplice do empobrecimento da língua”. Talvez até não me opusesse a que dissessem que, ao contrário, ando a “proteger os avanços históricos” de nosso idioma.

5. “Creio que o uso da nossa língua seria qualificado por meio de um maior e melhor conhecimento do mesmo, a fim de que todos possam dominá-lo bem, ao invés de se estabelecer a média de conhecimento como normal.”

Não vejo minha atuação nem, muito menos, aquela dos autores do livro Por uma vida melhor como “estabelecendo a média de conhecimento como normal”. Ao menos assim me pareceu depois de ler o capítulo 1 daquela obra. E justamente o que se vem procurando fazer é promover “um maior e melhor conhecimento” de nossa língua, ampliando os horizontes de nosso entendimento sobre ela, que não deverá se restringir à memorização de regra em cima de regra, numa ânsia desmedida de garantir o acesso a uma “norma culta” que, segundo se tem investigado, nem os ditos “cultos” eles mesmos parecem dominar.

6. “É necessário levar as pessoas ao conhecimento, ao invés de aceitar que não consigam obtê-lo.”

Isso já está, me parece, respondido acima. Ainda penso, se posso acrescentar algo à resposta, que o melhor método é ir do conhecido ao desconhecido. Assim, procederemos no estudo do idioma respeitando o conhecimento dele que trazem para a sala de aula nossos alunos. Não caberá entrar com Vieira e seus latinismos num grupo em que o contato com a língua escrita seja ainda bastante incipiente. Isso não quer dizer, porém, que não se chegue um dia ao genial padre barroco, havendo sempre, é claro, tempo e sobretudo interesse.

7. “Em outras palavras, ensinar de verdade, e não simplesmente dizer às pessoas que podem ficar como estão, sem muito entendimento.”

“Ensinar de verdade”! Que coisa! Poderia responder a esse comentário de muitos modos, mas aqui apenas referirei uma sugestão que li já nem me lembro em que autor, a de que passemos a usar “educar” em lugar de “ensinar”, e isso porque “ensinar” (do latim in + signare) é pôr algo (um “signo”) para dentro supostamente da mente do aprendiz, enquanto “educar” (latim e(x) + ducere) é conduzir algo para fora, supostamente também da mente do aprendiz.

Teríamos aí, portanto, duas concepções distintas de educação: na primeira (a de “ensinar”) quer meter-se algo na cabeça dos outros; na segunda (a de “educar”) busca-se, à moda socrática, auxiliar o outro a que veja por si mesmo o que o cerca, busca-se, portanto, como que extrair o conhecimento que lá no fundo, em nós mesmos, podemos encontrar.

É claro que há coisas de que nada ou muito pouco sabemos, e essas nos devam ser apresentadas possivelmente a partir do zero, senão quase a partir deste ponto. Nem todo conhecimento se dará pelo método da maiêutica, como queria Platão. Todavia, no caso específico de nossa língua-mãe, os alunos já a conhecem muitíssimo bem, pois dela vêm se servindo desde seus primeiros balbucios. Não se pode jogar fora toda essa experiência linguística e partir do nada, nem jamais se deverá dizer a alguém que a língua que traz de casa deva ser abandonada. Que o leitor considere a contribuição linguística que se encontra na obra de um Simões Lopes Neto, de um Guimarães Rosa, para mencionar apenas dois de nossos grandes e consagrados autores, e me diga se não é a língua do povo de uma riqueza inestimável!

Quem sabe isso não seja de fato “ensinar de verdade”. Pouco importa! Talvez devamos antes começar a “educar de verdade”.

Grande abraço!

Conrado

3 comentários:

  1. Muito legal poder ler o ponto de vista de um professor e estudioso da língua portuguesa sobre esse assunto tão polêmico. Assim, pessoas mais alheias como eu têm a chance de aprimorar os conhecimentos e até despertar o interesse no assunto.
    Parabéns pelo blog!

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  2. Agradeço à Paula e à Zíngara os comentários e o incentivo.

    Não serei eu com certeza o único a pensar assim, ainda que a opinião contrária seja possivelmente a mais difundida no momento.

    Enfim, sempre é tempo de todos aprendermos "mais e melhor" sobre nossa língua e as questões linguísticas que lhe são pertinentes.

    Grande abraço!

    Conrado

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