Nada como um cigarro depois do dentista. Um crime depois de sair da prisão. A gente não tem mesmo jeito. Eu, ao menos, pareço não ter.
Consegui finalmente ser atendido para que se fizesse a restauração do dente 26, depois do canal. É estranho que o dentista que tratou o canal (o “endodontista”) não tivesse ele mesmo feito a restauração, tendo apenas deixado ali algo provisório. É a especialização crescente dos saberes, o fim da “clínica geral”, por assim dizer.
Isso não era o que acontecia antes. A Dr.ª Neli Susin, por exemplo, fazia tudo, do princípio ao fim, e não era por falta de especialização, pois havia estudado clínica odontológica inclusive no Canadá. Tão logo a gente se deitava na sua cadeira, e já na primeira consulta, ela dava início ao tratamento, enquanto anotava no prontuário tudo que era preciso ser feito. Em mais alguns encontros, dependendo do caso, tínhamos alta.
– Volta daqui a uns seis meses, ok? – E eu voltava, sempre.
E a Neli tinha preços diferenciados. Na primeira consulta que tive com ela, me fez uma série de perguntas, quando descobriu coisas relevantes como o time de futebol para o qual eu torcia e o quanto ganhava por mês, entre outros dados. Dependendo da renda e outras informações relacionadas de classificação nos estratos sociais, ela cobrava um ou outro valor. A coisa era simples: os mais pobres pagavam menos; os mais ricos, mais. E ponto final. Não é improvável que o time de futebol tivesse também peso nessa classificação socioeconômica.
– Quer saber como eu acabei torcendo para o Grêmio? – me perguntou um dia.
– Hum...
(Os dentistas nem sempre se lembram de que não temos como responder-lhes senão, e muito modestamente, sim ou não.)
– Eu nunca dei bola pra futebol – continuou. – Mas tinha um namoradinho, de quem gostava bastante, que adorava esse esporte. Um dia ele me perguntou se eu era gremista ou colorada, e eu lhe respondi com outra pergunta, na verdade a mesma. Ele me respondeu que era colorado, claro! “Então eu sou gremista”, eu disse. E desde então sou gremista.
Me veio uma vontade louca de dar uma gargalhada, mas não pude, não tinha como. Que merda! Ela riu bastante por nós dois.
Essa era a Neli.
Mas voltemos ao dente 26. Consegui, depois de haverem desmarcado duas vezes, que retirassem a coisa provisória que o endodontista havia colado ali depois do canal e fechassem adequadamente o tal dente. Um alívio!
Enquanto se preparava para iniciar o trabalho, o dentista comentou (já não sei por que cargas d’água) que ia com frequência ao presídio, fazer implantes e branqueamentos nos presos.
– Devem ser presos com dinheiro – observei, porque, o procedimento não tendo ainda começado, era possível ainda dizer mais do que apenas “hum” (= sim) ou “hum.. hum” (= não). E perguntei:
– São assaltantes de bancos?
– Traficantes, acho – respondeu o dentista. – O branqueamento é a primeira coisa que querem, mas também faço muitos implantes. Ter belos dentes é uma questão de status no presídio.
– É mesmo?
– Ah é, sim!
– O Brasil já foi o país dos desdentados, não é? – falei, sem saber mais que dizer e pensando que talvez isso fosse a última coisa antes dos iminentes sim e não.
– Ainda é, embora talvez menos que antes – ele disse.
– E os dentistas têm sua dose de culpa nisso, não é verdade? – provoquei, enquanto ele já me pedia para abrir a boca. Na verdade, pelo seu olhar, o que talvez ele neste momento desejasse mesmo era que eu a fechasse.
Houve um silêncio. Eu agora já não podia dizer mais senão “hum” e “hum... hum”, que só servem apropriadamente para resposta, ao passo que ele, que podia falar quanto quisesse, guardou um silêncio pensativo.
Depois de certo tempo, disse:
– A responsabilidade é antes do poder público. Se houvesse serviço de odontologia disponível e de qualidade para a população, deixaríamos de ser “o país dos desdentados”.
A conversa morreu ali. Os pensamentos sobre o assunto, no entanto, seguiram. Os meus certamente, mas tenho pra mim que assim também os dele.
Esse dentista que me atendia era com certeza um homem bem-sucedido. Não tenho por que duvidar de sua competência e de que o sucesso evidente naquele centro odontológico bem equipado era fruto de trabalho sério e dedicado. Contudo, fiquei a pensar no papel social dos profissionais liberais e de como todos nós sempre atiramos no colo do poder público tudo quanto nos vêm cobrar de não estarmos fazendo. É evidente que, porque pagam seus impostos (os quais não serão decerto poucos), esses profissionais entendem, talvez não sem razão, que já estão fazendo a sua parte e de modo algum indo contra o juramento republicano que na formatura tão solenemente fizeram.
Ainda assim, me incomodou o fato de ele ir ao presídio atender aos traficantes. Num certo sentido, talvez forçando a barra um bocado, admito, podia mesmo dizer-se que trabalhava para eles, não? De onde aqueles presos tiravam o dinheiro grosso para dar-se ao luxo de fazer implantes e branqueamentos senão da miséria alheia? Teria esse mesmo dentista o cuidado em atender presos despossuídos de poder econômico, disponibilizando parte de seu tempo semanal ou até mensal para, não digo fazer tratamentos caros, mas ao menos alguma obturação ou mesmo extração, aliviando o sofrimento daquelas criaturas encarceradas? São presos, claro, e, se ali estão, algo de errado, de criminoso, supostamente fizeram, certo? Mas também os outros, os ricos do presídio, não estão ali certamente por algum prêmio. A diferença é o poder econômico de uns contra outros, não é?
Mas dos desvalidos cuide o poder público. Um profissional liberal bem-sucedido já dá sua cota de contribuição ao pagar seus impostos, correto?
Já na sala de recepção, enquanto estendia o cartão de crédito para pagar o tratamento recebido, a secretária sorridente me pergunta:
– O senhor vai precisar de recibo para o imposto de renda?
A pergunta fazia sentido e em nada a princípio desabonava a clínica e seu proprietário, evidentemente. Afinal, podia dar-se bem o caso de minha renda anual estar abaixo do valor a partir do qual se paga imposto, não havendo, portanto, necessidade alguma de minha parte que me dessem um recibo para o imposto de renda, pois não haveria necessidade nem lugar para pedido de restituição.
Enquanto acendia o cigarro, em direção ao carro, com o recibo na mão, não pude deixar de perguntar a mim mesmo se não era obrigação de todo prestador de serviço dar o recibo para o imposto de renda, houvesse ou não necessidade do documento. Pois é, pensei, talvez o recibo não fosse mesmo preciso nesses casos, e eu é que estava de má disposição contra o dentista. Aquela história dos presos, do poder público, de eu ter de voltar para que me fechassem o dente depois de duas tentativas frustradas, tudo aquilo me deixara certamente de mal humor.
De uma coisa, no entanto, tenho plena certeza: os traficantes do presídio, esses não pedem recibo algum. Ou pedirão?